Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 2 de abril de 2011

René Schickele: Abschwur

Desistência

Desisto:
De toda violência
De qualquer pressão
E mesmo da pressão
De ser bom para os outros.
Sei:
Pressiono somente a pressão.
Sei:
A espada é mais forte
Que o coração,
A batida insiste mais
Que a mão,
Violência rege
O que bem começou
Para o mal.

O mundo como eu quero,
Primeiro preciso eu mesmo
Virar inteiro e leve.
Preciso virar um raio de luz,
Uma água límpida
E a mais pura mão,
Ofertada à saudação e socorro.

Estrela à noite testa o dia,
Noite nina maternal o dia.
Estrela da manhã agradece à noite.
Dia raia.
Dia após dia
Procura raio após raio,
Raio em raio
Vira luz,
Uma clara água quer outra,
E mãos entrelaçadas
Criam em silêncio a união.

Poesia expressionista alemã: uma antologia. Org. e trad. Claudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p.170-173. Edição bilingue ilustrada. 

sexta-feira, 1 de abril de 2011

ABRIL: sentido figurado: juventude, viço (dicionário Houaiss)

sentido da vida

Alguém procura pelo sentido da vida na internet. Por acaso, ocorre uma interseção entre a referida busca (não pelo sentido da vida... mas pela combinação de palavras "sentido da vida") e este blog. Só pode ser um primeiro de abril, pois não faz mesmo sentido. O que exatamente não faz sentido? Basta viver para saber. A vida, em seu cerne, é uma piada de mau gosto. 

quinta-feira, 31 de março de 2011

cinema

Uma das vantagens de ir ao cinema é conferir o trailer de possíveis filmes a assistir. Quase chorei só de ver algumas cenas de As Mães de Chico Xavier: então nem pensar. Mas me pareceu interessante a proposta de A Novela das Oito, inspirado na novela Dancin Days. Nem que seja para respirar novamente aqueles ares de infância indo embora. Havia um estranho fascínio naquelas musas dançantes com suas meias bizarras e coloridas, fascínio que só mais tarde fui entender. Parece que o filme vai mexer no espinheiro da ditadura. Aqui a abertura da novela.

VIPs, o filme

Assisti VIPs e confirmei algumas coisas: Wagner Moura tirando, finalmente, a pele do Capitão Nascimento e vestindo outras personas, confirmando seu talento plural e sua posição de destaque entre os atores de sua geração. A interpretação da música "Será?", do Legião Urbana, comparece como aposta e como versatilidade do personagem: ele imita quem ele quiser, até Renato Russo. No Brasil, o culto às celebridades extrapola qualquer limite de bom senso, e a mãe de Marcelo é um exemplo, com seu painel ilustrativo e suas misteriosas máscaras. Mais do que isso, o pai aparece como uma espécie de fantasma constante e onisciente, a dirigir enigmas ao filho. VIPs confirma que o fundo do poço pode não ter fundo. Um detalhe: quando os Rolling Stones vieram ao Brasil fazer um show ao vivo na praia de Copacabana, uma nota de coluna social questionou a imensa área destinada aos VIPs: 2.000 pessoas. Tamanho contingente numa área dita VIP encerrava uma contradição que dizia respeito à proliferação das ditas celebridades. A mãe e o pai de Marcelo não cansam de repetir-lhe que ele é um zé-ninguém. Pois é. 

JAIR MAL SONORO

Clique na imagem para ampliá-la. Aqui o vídeo com as polêmicas declarações do deputado no programa CQC. Como diz uma amiga, é assim que o mundo anda para trás. Certamente este não é o país do futuro. Parece-me antes que teima em ser o país do passado, dos retrógrados. O Brasil vive uma estranha mistura de tempos: o presente é quase sempre fugidio, pois a luta pela sobrevivência muitas vezes assim o impõe; o futuro é um projeto de vida; e o passado é um fantasma que assombra em forma de múmias ditas liberais.

a beleza das ruínas


As ruínas do que se foi não necessariamente coincidem com aquelas do mundo ao redor. A descrição desse vídeo diz: "Built in the 50's, this oil refinery operated until 1984 when it was shut down. It has been abandoned now for over 27 years, a temple to the beauty of entropy." Entropia é um conceito aprendido nas aulas de Física, que diz respeito à tendência à desorganização dos sistemas. Mas viver é lutar, teimar por pôr um pouco de ordem nas coisas, pelo menos em si mesmo. 

mulheres

“Eu poderia me iludir, acreditar que sou bela como as belas mulheres, como as mulheres olhadas, porque realmente me olham muito. Mas sei que não é uma questão de beleza, e sim de outra coisa, por exemplo, sim, outra coisa, por exemplo espírito.”

“Sei que não são as roupas que tornam as mulheres mais ou menos belas, nem os cuidados de beleza, nem o preço dos cremes, nem a raridade, o valor dos adornos. Sei que o problema está em outro lugar. Não sei onde. Só sei que não é onde as mulheres pensam que está.”

“Essa omissão das mulheres em relação a si mesmas, praticada por elas mesmas, sempre me pareceu um erro.”

DURAS, Marguerite. O amante. Trad.Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p.18-19. 

relendo grande sertão: veredas (IX)

“Refiro ao senhor: um outro doutor, doutor rapaz, que explorava as pedras turmalinas no vale do Arassuaí, discorreu que a vida da gente encarna e reencarna, por progresso próprio, mas que Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar ― é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então a gente não tem licença de coisa nenhuma.”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.76. 

terça-feira, 29 de março de 2011

Albert Ehrenstein: Hoffnung

Esperança

Não tenho poder
De dar olhos a pedras cegas.
Fácil, porém, a uma pobre
Desprezada, velha poltrona,
A quem falta um pé,
Dou alegria,
Sentando-me nela suavemente.

Sejam doces, ó Fortes!
E, reunindo poder à coragem,
Logo, quais santas, as pessoas serão
Desextasiadas de pobreza podre
E na sua existência
Os deuses morreram,
Encontram o céu.

Poesia expressionista alemã: uma antologia. Org. e trad. Claudia Cavalcanti. São Paulo: Estação Liberdade, 2000, p.62-63. Edição bilingue ilustrada. 

relendo grande sertão: veredas (VIII)

“Jagunço é isso. Jagunço não se escabrêia com perda nem derrota ― quase que tudo para ele é o igual. Nunca vi. Pra ele a vida já está assentada: comer, beber, apreciar mulher, brigar, e o fim final. E todo o mundo não presume assim? Fazendeiro, também? Querem é trovão em outubro e a tulha cheia de arroz. Tudo que eu mesmo, do que mal houve, me esquecia. Tornava a ter fé na clareza de Medeiro Vaz, não desfazia mais nele, digo. Confiança ― o senhor sabe ― não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa.”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.72. 

barquinhos doces...

Alguém busca por barquinhos doces na web e chega (ou quase) até aqui. Uma alegria qualquer me invade. Barquinhos doces para navegar! Internauta estimado, obrigada pelo presente. O sertão vai virar mar, pois não resistirá ao apelo, ser navegado por barquinhos doces? Não adocicados, mas suaves? Resistirão os barquinhos à força da intempérie? 

Sobradinho, de Sá, Rodrix & Guarabyra.

segunda-feira, 28 de março de 2011

trecho de conversa: música

"Eu não sabia muita coisa sobre música, quer dizer, sempre gostei de ouvir, até que o silêncio de uma casa foi me mostrando o quanto nossa sensibilidade precisa desse recolhimento, para poder escolher os sons que deseja ouvir."

All Along the Watchtower: uma canção que... (cover by CO2)

[Bob Dylan & Jimi Hendrix]

domingo, 27 de março de 2011

sessão nostalgia - the sound of silence (canto gregoriano)

Canção de Simon & Garfunkel

música-tema de "Asas do Desejo"

The Carny, Nick Cave and The Bad Sads

The Lonesome Death of Hattie Carrol - Bob Dylan (cover)

... e aqui na lindíssima interpretação do Dylan, álbum Bob Dylan Live 1975 
letra no site oficial

relendo grande sertão: veredas (VII)

“Eu cá não madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mim era variável. Ah, aqueles tempos eu não sabia, hoje é que sei: que, para a gente se transformar em ruim ou valentão, ah basta se olhar um minutinho no espelho ― caprichando de fazer cara de valentia; ou cara de ruindade! Mas minha competência foi comprada a todos custos, caminhou com os pés da idade.”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.62.