Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 15 de março de 2014

Stéphane Mallarmé

A TUMBA DE EDGAR POE

Tal que a Si-mesmo enfim a Eternidade o guia,
O Poeta suscita com o gládio erguido
Seu século espantado por não ter sabido
Que nessa estranha voz a morte se insurgia!

Vil sobressalto de hidra ante o anjo que urgia
Um sentido mais puro às palavras da tribo,
Proclamaram bem alto o sortilégio atribu-
Ído à onda sem honra de uma negra orgia.

Do solo e céu hostis, ó dor! Se o que descrevo —
A ideia só — não esculpir baixo-relevo
Que ao túmulo de Poe luminescente indique,

Calmo bloco caído de um desastre obscuro,
Que este granito ao menos seja eterno dique
Aos voos da Blasfêmia esparsos no futuro.

Mallarmé. Trad. Augusto de Campos. 4.ed. São Paulo: perspectiva, 2010, p.67.

2Cellos

quinta-feira, 13 de março de 2014

saudades de renato russo e suas tiradas maravilhosas

artigo indefinido

não acredito                                    viver
                           ser possível                          sem poesia.

Emily Dickinson

No fim nos guia a Experiência
Sua acerba amizade
Não há de dar a um Axioma
Uma Oportunidade


Experiment escorts us last –
His pungent company
Will not allow an Axiom
An Opportunity

DICKINSON, Emily. A branca voz da solidão. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2011, p.158-159.

domingo, 9 de março de 2014

chove...

CANTIGAS ESQUECIDAS – III
Paul Verlaine

Chora no meu coração
Como chove na cidade;
Qual será tal lassidão
Entrando em meu coração?

Ó doce rumor da chuva
Pela terra e sobre os tetos!
Coração que se enviúva,
Ó, a cantiga da chuva!

Chora sem qualquer razão
No coração que se enfada,
Pois! Nenhuma traição?…
Este luto é sem razão.

É bem certo a pior dor
A de não saber por quê
Sem amor e sem rancor
Coração tem tanta dor!

Tradução José Lino Grünewald. Disponível aqui.


Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme. Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego...

Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece...

Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente...

Fernando Pessoa. Poesia 1931-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.199-200.

Jacques Prévert

PRODÍGIOS DA LIBERDADE

Nos dentes da armadilha,
a pata da raposa.
E o sangue sobre a neve,
o sangue da raposa.
E marcas sobre a neve,
as marcas da raposa
que foge com três patas,
sob o sol já poente,
levando entre seus dentes
uma lebre ainda viva.

Carlos Drummond de Andrade. Poesia traduzida. São Paulo: Cosac Naify, 2001, p.307.