Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 5 de outubro de 2013

Emily Dickinson

Depois de mais cem anos
Ninguém sabe o Lugar
É Paz que não se move
A Dor que ali doeu

Cresceu altiva a grama
O Estranho que foi lá
Só viu a Ortografia
De quem já faleceu

No ar do Verão o Vento
Da trilha há de lembrar
O Instinto guarda a Chave
Que a memória perdeu


After a hundred years
Nobody knows the Place
Agony that enacted there
Motionless as Peace

Weeds triumphant ranged
Strangers strolled and spelled
At the lone Orthography
Of the Elder Dead

Winds of Summer Fields
Recollect the way
Instinct picking up the Key
Dropped by memory

DICKINSON, Emily. A branca voz da solidão. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2011, p.74-75.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

sonhos

O que dizer dos sonhos quando, para se dizer algo deles, já são matéria transformada pela linguagem, incorporados como narrativa reconhecível? Sonhei com Bob Dylan, que estava muito próximo de mim, mas havia um silêncio imposto que impedia a fala, minha e dele. Esse silêncio — suas circunstâncias — é a parte mais estranha de tudo, praticamente intraduzível, e trazia consigo uma origem, um agente deflagrador. Havia uma interdição à fala, algo que foi se construindo, se fazendo, e era doloroso, difícil, e traía fragilidade, vulnerabilidade, ausência de proteção de minha parte, como se eu tivesse desamparado alguém que amo. O impedimento de falar era muito incômodo, porque não era simplesmente algo físico: antes, falar representava uma espécie de perigo, uma ameaça. A sensação foi única, muito viva e real, intraduzível e praticamente incompreensível pelo pensamento e seus signos verbais. Havia uma situação envolvendo um improvável Bob Dylan, frágil e desamparado, e a mim, impedida de falar por coisas que eu mesmo havia feito, ou fizeram, quem sabe. Mas aqui eu posso, ainda que me censure.

respeitar os professores está na moda

terça-feira, 1 de outubro de 2013

poesia

Porque
    O som
E o
    Silêncio
Irmanam-se
    À vida — que sabe quando o som deixa de ser silêncio.

Emily Dickinson

O Espírito não mostra
A mais íntima Hora
Que Horror subjugaria as Ruas
Se lhe viesse à Cara

O Porão dentro da Alma
O Subterrâneo Peso –
Só Deus faz um Lugar tão cheio
Ficar silencioso.


Its Hour with itself
The Spirit never shows
What Terror would enthrall the Street
Could Countenance disclose

The Subterranean Freight
The Cellars of the Soul
Thank God the loudest Place he made
Is license to be still.

DICKINSON, Emily. A branca voz da solidão. Trad. José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2011, p.172-173.