Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 2 de janeiro de 2016

um país infecto

Acho o Brasil infecto ― disse Drummond em sua correspondência com Mário de Andrade. Continua o missivista: “O Brasil não tem atmosfera mental; não tem literatura; não tem arte; tem apenas uns políticos muito vagabundos e razoavelmente imbecis ou velhacos.” A missiva é de 1924. Portanto, estamos sintonizados com Drummond.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

trégua (ou recesso)

Esta é a melhor época do ano ― seu finzinho. Passou o frisson do Natal, aquela expectativa midiática toda em torno de uma ceia que poderia descambar em barracos natalinos. Sobreviveu-se aos próprios barracos, com um arranhão ou outro, que um bom vinho e o analista vão resolver. São cinco dias sagrados, entre 26 e 30 de dezembro, em que ainda se está em 2015 e ainda não é 2016. Uma adorável suspensão de (quase) tudo, que permite ao ser palmilhar a superfície das coisas, sem penetrá-las ou ser muito afetado por elas. Um mar caribenho em que não se vislumbra qualquer pontinha de iceberg desmancha-prazeres, porque o clima está ameno, agradável, está um clima metafórico. No dia 31 começará a contagem regressiva para o novo ano, o Ano Novo, e será dada a largada a uma nova maratona de sabe-se lá o que. Angústias, incertezas, previsões e notícias ruins, ataques, mortes violentas, a crise nossa de cada dia ― enfim, todo o rosário da desgraça humana a que Brás Cubas assistiu em seu célebre delírio. Mas, por enquanto, nesses breves cinco dias, vive-se o nirvana do tempo, um parêntese generoso nas (e das) solicitações, demandas e necessidades

Carlos Drummond de Andrade

POEMA DA NECESSIDADE

É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades
é preciso substituir nós todos.

É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,
é preciso estar sempre bêbado,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.

É preciso viver com os homens
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar O FIM DO MUNDO.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Reunião. 10 livros de poesia. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, p.47.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015