Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 2 de julho de 2011

some one (curta)

Tribute to Rene


Saudade dos Aviões da Panair (Conversando no Bar)


e lá vai menino senhor de todo fruto
sem nenhum pecado, sem pavor
o medo em minha vida nasceu muito depois
...
nada de triste existe que não se esqueça
alguém insiste e fala ao coração
tudo de triste existe e não se esquece
alguém insiste e fere no coração

[site oficial de Milton Nascimento]

crítica

"Um crítico é um leitor que rumina. Ele deve, portanto, ter mais de um estômago." 

SCHLEGEL, Friedrich.  Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. Trad. Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Iluminuras, 1994, p.83.

sertão... ser tão... grande sertão... desertão... deserto... desertar... deserção

Informa Willi Bolle que a origem da palavra sertão é incerta (sem trocadilho), oriunda talvez de desertão: "Na verdade, a etimologia da palavra sertão é desconhecida [...]. Há, contudo, momentos, tanto em Guimarães Rosa quanto em Euclides da Cunha, em que o sertão torna-se um deserto", explica em nota o estudioso (O sertão como forma de pensamento, Scripta, v. 2, n.3, 1998, p.260). O Houaiss corrobora: "origem obscura; JM registra que, 'na opinião de certos autores, o vocábulo seria evolução do latim desertanu-, com operações fonéticas ainda não suficientemente esclarecidas'." AQUI uma bela apreciação das possíveis origens do termo sertão. E neste post apenas uma brecha, feito cortina entreaberta, a vislumbrar os misteriosos caminhos que a palavra sertão pode ter percorrido, e que se revolvem um pouco seu mistério não tiram seu jeito de enigma, seu encanto.

água, sonho liquefeito, em líquido desfeito

Afogo, em sonho, o amor nas águas da placenta de minha mãe. Mas também explanava ontem, na aula, sobre a hipérbole em Alice, a possibilidade de se afogar nas próprias lágrimas, aliás tudo se passando em sonho. Havia muita água em tudo.

Dylan Thomas

Se em meu ofício, ou arte severa,
Vou labutando, na quietude
Da noite, enquanto, à luz cantante
De encapelada lua jazem
Tantos amantes que entre os braços
As próprias dores vão estreitando ―
Não é por pão, nem por ambição,
Nem para em palcos de marfim
Pavonear-me, trocando encantos,
Mas pelo simples salário pago
Pelo secreto coração deles.

Não pelo homem altivo, alheio
A tormentosa lua escrevo
Sobre estas páginas de espuma
Nem pelos monstros imponentes
Com seus rouxinóis, seus salmos,
Mas pelos que se amando estreitam
Nos braços toda a dor das eras,
Que não louvam, não pagam, nem escutam
O meu ofício ― ou arte severa.


In my craft, or sullen art,
Exercised in the still night
When only the moon rages
And the lovers lie abed
With all their griefs in their arms
I labor by singing light
Not for ambition or bread
Or the strut and trade of charms
On the ivory stages,
But for the common wages
Of their most secret heart.

Not for the proud man apart
From the raging moon I write
On these spindrift pages,
Nor for the towering dead,
With their nightingales and psalms,
But for the lovers, their arms
Round the griefs of the ages,
Who pay no praise or wages,
Nor heed my craft, or art.

FAUSTINO, Mário. Poesia completa e traduzida. Org. Benedito Nunes. São Paulo: Max Limonard, 1985, p.294-295.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

cogumelos

― Mariana, você já conseguiu encontrar seus cogumelos?
À pergunta, tão sem nexo aparente com o restante, mas tão acertada, eu respondi que sim, não sem antes titubear ― o mote era o texto de Paulo Mendes Campos sobre Alice, a frase: Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.” Encontrar os cogumelos. Essa pergunta, tão simples, tão exata, eu ainda não havia me feito; entretanto foi simples responder: sim, já encontrei. 

arredores

Nas margens desta manhã, escrevo como quem sonha ― enquanto a noite, em sonhos, me dá notícia do insosso do dia.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Torquato Neto: as palavras estão no mundo como está o mundo

MARCHA À REVISÃO (trecho)

Quando eu a recito ou quando eu a escrevo, uma palavra ― um mundo poluído ― explode comigo & logo os estilhaços desse corpo arrebentado, retalhado em lascas de corte & fogo & morte (como napalm), espalham imprevisíveis significados ao redor de mim: informação. Informação: há palavras que estão no dicionário & outras que eu posso inverter, inventar. Todas elas juntas & à minha disposição, aparentemente limpas, estão imundas & transformaram-se, tanto tempo, num amontoado de ciladas. Uma palavra é mais que uma palavra, além de uma cilada. Elas estão no mundo como está o mundo & portanto as palavras explodem, bombardeadas. Agora não se fala nada, um som é um gesto, cuidado. Vida Toda Linguagem, cf. Mário Faustino que era daqui e um dos maiores & quem quiser consulte. No princípio era o Verbo, existimos a partir da Linguagem, saca? Linguagem em crise igual a cultura e /ou civilização em crise ― e não reflexo da derrocada. O apocalipse, aqui, será apenas uma espécie de caos no interior tenebroso da semântica. Salve-se quem puder.

NETO, Torquato. Torquatália {do lado de dentro}. Org. Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: Rocco, 2004, p.311.

comentários na internet... por Chico Buarque


Apanhado no Inverno em Lisboa... Excelente a gargalhada e o dito: não se pode ficar com raiva de quem já tem raiva... É o Chico! ― como diz o Paulinho Schoffen.

EGO (Louis Blaise, 2005)

EGO on VimeoTambém no Youtube.

O que você está condensando nesses curtas? 
― pergunta-me minha analista. Go!

All My Love - Led Zeppelin (versão estúdio)

ALL ALONG THE WATCH TOWER (curta)

sorriso familiar

Alguém que conheço apareceu-me em sorriso esta noite ― e não era o Gato de Cheshire ― quem sabe o Gato de Cheshire engendrado pelos muitos e sinuosos encontros entre os livros e a vida. 

a última imagem desta noite

Uma das últimas imagens desta noite foi uma onda enorme me engolindo ― ou a caminho de, eu também onda, mar, porém menor. A última imagem desta noite é o desenho de um acontecimento que faz tempo tento entender, o que (me) diz mais de minha angústia do que necessariamente de ter entendido. Na última imagem desta noite a própria metáfora, de que por fim tentava fugir, me engolfou: a metáfora do mar, não esta aqui do blog, mas de outra natureza. E eu acordava, no sonho, em um quarto reformado em que não havia mais vestígios ― traços ― do que tentava entender, e que engendrou a metáfora, ou então a metáfora tinha desaparecido, uma vez me engolfado (mais foi isso mesmo?), sem deixar traços. Mas logo constatava o engano, pequenos defeitos no reboco mal acabado, fazendo daquela gigantesca onda uma presença incômoda, com a qual precisaria lidar. O traiçoeiro (enganoso) da metáfora, a última imagem desta noite. E afinal eu acordei, ainda no sonho, então a metáfora não me engolfou.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Into The Wild (Sean Penn, 2007)


Todo mundo assistiu Na Natureza Selvagem, do competente Sean Penn. Trata-se apenas então de assinalar um incômodo, que o filme deixa em aberto. Esse incômodo é a própria natureza e o desejo de se integrar a ela. Nada no filme foge do mito romântico, em nenhum momento o adjetivo selvagem que acompanha o substantivo natureza representa uma ameaça à integridade psíquica ou moral do personagem, que vai ao encontro de si mesmo, fugindo da civilização e seus vícios, mas um "si mesmo" já latente nessa busca: no extremo selvagem da natureza ele encontra a poesia. É tocante o modo como o personagem se despe (sem saber que estava também se despedindo) da civilização, tornando-se, assim, mais e mais belo. Ele continua inabalável no seu desejo de forjar um novo homem, na extrema solidão, nos extremos da natureza. Não conseguindo sobreviver a esses extremos, fica ecoando a pergunta sobre como seria este novo homem, caso o personagem tivesse conseguido retornar. Para onde ele estaria voltando?

Ah, a belíssima epígrafe de Perto do coração selvagem: “Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do selvagem coração da vida” (James Joyce). Impossível não estar feliz quando perto do coração selvagem... da vida. 

e as pedras continuam a rolar

melancolia

Uma pequena lembrança, meu irmão pequeno, quando pequeno, aprendendo a falar a palavra urubu... Uma pequena lembrança e o dia desanda, enquanto ando em vão procurando um lugar para almoçar. Por que a lembrança súbita? Ele tinha um jeito próprio de soletrar essa palavra, o erre não saía bem. Nós, eu e meus irmãos, a gente foi nascendo e se desencantando, nossos pais não sabiam o que fazer com a gente. Não puderam se evitar, não por amor, mas por essa outra lei que rege os destinos: uniram frustrações e dali acharam que poderia sobrevir alguma salvação, algum sentido para as suas vidas. Muito depressa ele se refugiou no álcool e ela na vaidade. Como não havia amor, nós nascemos porque assim era preciso: ter filhos para sustentar era uma forma de manterem-se ocupados, trabalhando dia e noite, sem parar, e depressa querendo de nós o mesmo, a ética do trabalho, da responsabilidade, do vencer (ser alguém) na vida. Eu não venci nada. Foi a vida que me venceu, me dobrou, me quebrou por dentro. O único amor que existiu, em migalhas, foi aquele que surgiu do sangue, mas arredio, e que por isso dói mais. O que minha memória consegue chamar de amor é em mim negação, e por isso talvez  me sinta tão incapacitada para o amor, ao mesmo tempo em que consigo enxergar em mim as qualidades que ensejam este sentimento. Meus pais foram minha iniciação brutal na vida. Mas como eles foram incompetentes em quase tudo, inclusive em serem incompetentes, então eles falharam, e por isso os filhos conseguiram se salvar deles, do estrago que eles poderiam ter causado caso tivessem conseguido destruir nos filhos a vida que negaram em si, se unindo. Eles bem que tentaram, mas aos poucos cada um se alforriou como pode. E se hoje me lembrei do meu irmão é que essa alforria teve seu preço. 

terça-feira, 28 de junho de 2011

Alejandra Pizarnik

VERDE PARAÍSO

extraña que fui
cuando vecina de lejanas luces
atesoraba palabras muy puras
para crear nuevos silencios

Alejandra Pizarnik. Poesía completa. Barcelona: Lumen, 2000, p.175.

Alejandra Pizarnik: POEMA PARA EMILY DICKINSON

Del otro lado de la noche
la espera su nombre,
su subrepticio anhelo de vivir
¡del otro lado de la noche!

Algo llora en el aire,
los sonidos diseñan el alba.

Ella piensa en la eternidad.


Alejandra Pizarnik. Poesía completa. Barcelona: Lumen, 2000, p.64.

"O diabo na rua, no meio do redemunho..." (GSV)

“Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças ― eu digo. Pois não é ditado: ‘menino ― trem do diabo’? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio do redemunho...”

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 26-27.

Caetano Veloso: Cajuína


Anterior à pergunta que norteia esta canção, sondando o destino, na belíssima homenagem a Torquato Neto, há outra, formulada pelo narrador-especulador do conto “O espelho”, de Guimarães Rosa: "Você chegou a existir?"

Last Known Surroundings (Explosions In The Sky)

 Outros detalhes AQUI. Site oficial: Explosions In The Sky.

N O I T E

As duas últimas noites foram ingratas em matéria de sonho. Alguma coisa se passa. Na noite anterior, um pesadelo me sufocava, medos, fantasmas a rondar, e na tentativa de acordar acordei dentro do sonho, e só consegui acordar mediante um grito, que se não chegou a ecoar na casa, ecoou o bastante na noite. Esta noite, novamente, dificuldade incomum para dormir, acordava e dormia. Não sei nada do que sonhei esta noite, ao contrário da nitidez do sonho (ou pesadelo) da noite anterior, mas a matéria é a mesma, e alguma coisa diferente, nova, está acontecendo. Assisti, por uma qualquer curiosidade infantil, este vídeo no domingo, e a aparente paz de minha noite, aquela dos sonhos que acordavam pela manhã sentidos novos, cedeu espaço a forças que preciso entender logo.

Learningo to Fly: Pink Floyd


Aqui num vídeo imperdível: "Can I escape this irresistible grasp?" 
Manda muito a bateria, e a sonoridade é mesmo irresistível.

domingo, 26 de junho de 2011

o nome da rosa

posts, poucos, que levam como marcador “o nome da rosa”, e é claro que, até onde pretendo, não tem a ver com o livro de Umberto Eco, mas com outra coisa, uma conversa com um amigo numa madrugada fria, em que falávamos de coisas importantes para ambos, segredos, certamente meu segredo mais segredo (ou secreto) que o dele. Porque poder contar um segredo é confiar, e eu queria confiar. Por mais que um segredo seja segredo, é preciso poder escolher revelá-lo, mesmo que seja para poucos, mesmo que seja algo inofensivo. Ninguém escolhe ter segredos, eu não sabia que um dia viria a tê-los. Aquele dia, aquele amigo, eu queria. E foi então que ele me disse uma coisa muito bonita: “Que há num simples nome? O que chamamos rosa, sob uma outra designação teria igual perfume.” (William Shakespeare). O que chamamos rosa, sob uma outra designação, teria igual perfume? Então toda vez que escuto alguém dizendo que me conhece e tal, que sabe de mim, que me tem decifrada, eu muito comigo me rio, dizendo, silenciosamente, que sou eu quem escolhe quem pode me conhecer. Tanto é que estou aqui, neste espaço, escrevendo (às vezes escrevendo sem conseguir parar), porque a vida é texto, testamento, e um dia eu irei de vez, então que pelo menos fique (se existir algo para ficar, é bom lembrar) a caligrafia rápida destas palavras, pórtico partido para o Impossível. E me ocorre o seguinte, pensando em tanta coisa lida e relida, que há segredos em nós dos quais sequer suspeitamos, há camadas de segredos, temos acesso apenas aos mais visíveis, que se revelam a nós e escolhemos eventualmente revelar, mas há muitos outros de que dificilmente vamos tomar conhecimento. Quem sou eu? No fundo do fundo do fundo de mim, o que encontraria se me fosse dado acesso à resposta, ou respostas, desta pergunta? Dizer “tenho segredos” soa, assim, redundante, pois a própria linguagem está enganando quem pensa ter poder sobre ela, falando com todas as letras as palavras que quer pronunciar ― ou escrever. 

The Times They Are A-Changin


Não é que esta versão ao piano me transporte, por exemplo, até uma igreja. Seria pouco, e eu me sentiria desconfortável. Ela me transporta até o sagrado, não aquele dos píncaros e deuses, que afinal talvez nem exista (as moedas de Borges...), mas o sagrado que reconheço em mim, e que afinal é a fonte de outras formas do sagrado (para mim, acrescentando), como meu amor sem limites pela palavra. Um detalhe: a moldura da execução da canção ao piano, a famosa capa dos Beatles, é duplicada pelos próprios quadros emoldurados na parede.

entre terça e sexta-feira: moedas perdidas de Borges (ou o princípio da realidade)

Entre as doutrinas de Tlön, nenhuma mereceu tanto escândalo como o materialismo. Alguns pensadores o formularam, com menos clareza que fervor, como quem antecipa um paradoxo. Para facilitar o entendimento dessa tese inconcebível, um heresiarca do primeiro século ideou o sofisma das nove moedas de cobre, cujo renome escandaloso equivale em Tlön ao das aporias eleáticas. Deste “raciocínio especioso” há muitas versões, variam o número de moedas e o número de achados; eis aqui a mais comum:
“Na terça feira, X atravessa um caminho deserto e perde nove moedas de cobre. Quinta feira, Y encontra no caminho quatro moedas, um pouco enferrujadas pela chuva de quarta-feira. Sexta-feira, Z descobre três moedas no caminho. Sexta-feira de manhã, X encontra duas moedas no corredor da sua casa.” O heresiarca queria deduzir desta história a realidade ― id est, a continuidade ― das nove moedas recuperadas. “É absurdo (afirmava) imaginar que quatro das moedas não existiram entre terça e quinta-feira, três entre terça-feira e a tarde de sexta-feira, e duas entre terça-feira e a madrugada de sexta-feira. É lógico pensar que existiram ― ainda que de algum modo secreto, de compreensão vedada aos homens ― em todos os momentos destes três prazos.”
A linguagem de Tlön se opunha a formular esse paradoxo; os demais não entenderam. Os defensores do sentido comum limitaram-se, no início, a negar a veracidade do episódio. Repetiram que era uma falácia verbal, baseada no emprego temerário de duas palavras neológicas, não autorizadas pelo uso e alheias a todo pensamento severo: os verbos encontrar e perder, que implicam uma petição de princípio, porque pressupõem a identidade das nove primeiras moedas e das últimas. Recordaram que todo substantivo (homem, moeda, quinta-feira, sexta-feira, chuva) somente tem valor metafórico.

BORGES, Jorge Luis. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Ficções. Trad. Carlos Nejar. São Paulo: Globo, 1998, Obras Completas I, p.482-483.

Tom Jobim: Sabiá (Tom Jobim e Chico Buarque)

[o motivo do exílio na poesia brasileira encontrou aqui uma expressão sublime]

Mário Faustino: um verso rampante


BRASÃO

Nasce do solo sono uma armadilha
Das feras do irreal para as do ser
― Unicórnios investem contra o Rei.

Nasce do solo sono um facho fulvo
Transfigurando a rosa e as armas lúcidas
Do campo de harmonia que plantei.

Nasce do solo sono um sobressalto.
Nasce o guerreiro. A torre. Os amarelos
Corcéis da fuga de ouro que implorei.

E nasce nu do sono um desafio.
Nasce um verso rampante, um brado, um solo
De lira santa e brava ― minha lei

Até que nasça a luz e tome o sonho,
O monstro de aventura que amei.

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p.65. Imagem obtida aqui.

OS JORNAIS NÃO MENTEM

“Mas vejamos de perto a natureza dos contrastes que a retórica produtivista tem que enfrentar. É só abrir qualquer um dos jornais de grande público de São Paulo ou do Rio. São parte conspícua de uma imprensa que se quer moderna e, com certeza, influi nas mentes e nos corações de alguns milhões de leitores cultos e semicultos. O que vamos encontrar? Na segunda e na terceira páginas, editoriais sisudos que louvam o trabalho controlado, a economia austera, a administração proba, a escola rigorosa, a política responsável, uma basta à inflação, ao desperdício, à corrupção, ao golpismo etc. Fala nesses textos o superego social-democrata do centro. Mais adianta, vêm os cadernos de ‘cultura’, lazer, cotidiano, turismo, dinheiro e moda. Aí se amontoa toda sorte de isca para o consumo desbragado, para o uso e abuso do descartável, para a especulação associal, para a transgressão, a anomia, a perversão, a barbárie. São instrumentos de uma orquestra imensa que, aparentemente, não podem afinar-se. ‘Vamos tocando!’, é a sua lei imanente. Que leitores deveriam cumprir religiosamente o grande pacto da austeridade, da poupança, da produtividade? Os mesmos nos quais se excita o desejo de tudo comprar e vender, tudo consumir e consumar, e para os quais o jornal monta um espetáculo de venalidade universal, irresponsável pelos efeitos daquele vórtice nonsense?

A orquestra não pode parar. Não há síntese, só aglutinação. O mercado internacional, objeto último do desejo de modernização, precisa de uma legião de homens e mulheres que com seus braços, mãos e olhos prestantes façam e refaçam sem interrupção as partes daquele ‘todo’ vendável, logo mutante e substituível. Aliciar sem o menor pudor os instintos dos consumidores usando a vanguarda da propaganda e do comércio é plus-moderno, sem dúvida, mas não dispensa a constituição daquele exército mudo que na retaguarda opera just in time e com o devido autocontrole. Mas para o Brasil pobre qual viria a ser o sentido desse trabalho coletivo que se quer modernizar? Até agora, tem sido entrar mais eficazmente em uma vasta engrenagem de produzir desigualdades. Seguramente, pede a justiça que se diga, não é esta a intenção dos social-democratas, all honorable men, que juntam em suas falas competitividade e equidade."

Alfredo Bosi. Dialética da colonização. 3.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.370-371.