Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 23 de abril de 2011

viagem ao interior do ES



Fotografia tirada no interior do ES, em 19/03/2011, na localidade de Cachoeira Alta, onde nasci. A estrada em foco é o retorno da escola onde estudei até a 3ª série do antigo curso primário. A paisagem, seguindo em frente, atravessada pelo rio, dá acesso a um lugar chamado Grota Funda, onde terminava a faixa de terra que meu pai cultivava, faixa que se estendia do rio, este mesmo que está aí na fotografia, próximo à minha casa, até o outro lado do morro: casa, trabalho e escola: desde cedo tudo muito imbricado, atravessado por um rio, por estradas e caminhozinhos. Há uma estrada quase imperceptível na fotografia, após a ponte, margeada por cercas de arame farpado. Essa estrada conduz à minha antiga casa, e tudo nessa paisagem é muito triste, pois diz de um mundo a que eu não mais pertenço, mas que reconheço como parte inalienável de minha infância, e portanto de mim mesma.

m.

"... oh vontade de dizer um desaforo bem alto para assustar todos. A velha não entenderia? Não sei, ela que já deve ter parido várias vezes." 

["A partida do trem", C.L.]

Murilo Mendes

CONFIDÊNCIA

Digo-te que me busco em todos os retratos,
Na água de muitos rios
E não me reconheço.

Digo-te que invento o livro de imagens
Para ressuscitar a infância
― Não a verdadeira, mas a que sonhei.

Digo-te que procuro um ponto sobre a terra
Onde o homem possa respirar.

Digo-te que abracei a estátua do Ente dos entes
E que meus braços foram em peregrinação ao desconforto.

MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p.366.

poesia

O marcador "poesia" está inflacionando em relação aos demais. Eu nada posso fazer. Não há como substitui-lo, nem substituir a poesia.

o silêncio das palavras

Um narrador desbragado e típico de Raduan Nassar afirma esta preciosidade: "já cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho, dou-lhe o meu silêncio." As palavras pairam diante de minha inquieta atenção, um desejo pelas palavras como se nelas estivesse a chave. Não está, porque não há nenhuma chave. Quase toco as palavras, e é um mundo de silêncio e vozes e ecos que repercutem naquilo que vai se escrevendo por força de desejá-las. Não posso dar-me o luxo de fazer acordos perfeitos com o mundo: ele me exige, exige minha performance pela linguagem no exercício da profissão, o que resvala para o barulho. Mas estou tateando acordos comigo mesma: sempre que posso, dou-me o prazer do silêncio. Que pode ser entendido também como prazer da escrita. A escrita que se constrói como um amor inútil, amor pelo amor, porque já não se consegue viver sem ela:

SOBRE ESCREVER

Às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia. 

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.254.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

sessão nostalgia: Renaissance: Carpet of the Sun

Pessoa: um presente que ganhei da Sônia


Todos sabem o que o dia de hoje significa para o imaginário cristão. No entanto, ao contrário de um ano atrás, estou leve, em paz com minhas questões espirituais. Então, enquanto pensava vagamente em dizer algo acerca, experimentei um momento de intensa alegria, ao ganhar este presente, o vídeo acima, da Sônia. Não titubeei, hesitando talvez ante a possibilidade de tratar-se de outra Mariana. Senti-me tão alegre que vesti imediatamente a pele da Mariana referida, afinal o post intitula-se "Pessoa". E a leveza confundiu-se com a fumaça do cigarro, a beleza com o ruflar de asas de uma borboleta. Sem palavras para agradecer!

Walt Whitman

E o que é o homem afinal ? O que sou eu ? e o que é você ?
Tudo o que assinalo como meu você tem que compensar com o que é seu,
Ou estaria perdendo seu tempo me ouvindo.

Não fico choramingando pelo mundo,
Dizendo que os meses são vácuos e a terra é só lama e lixo,
Que a vida é uma fraude e um fiasco, que no fim o que fica são farrapos miséria e lágrimas.

Choradeira e submissão misturados com remédios para inválidos.... o conformismo vai até a quarta geração,
Boto o chapéu como bem entender dentro ou fora de casa.

Será que devo rezar ? Venerar e ser cheio de cerimônias ?

WHITMAN, Walt. Folhas de relva. Trad. Rodrigo Garcia Lopes. São Paulo: Iluminuras, 2008, p.69.

Graciliano Ramos: sobre a maledicência

"De fato o que mais nos choca não é a sinceridade, às vezes impertinente: é a arranhadela feita com mão de gato, a perfídia embrulhada num sorriso, a faca de dois gumes, alfinetes espalhados numa conversa."

RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. 44.ed. Rio de Janeiro; Record, 2008, p.71.

P.S. O sr. Reinaldo Azevedo (criatura para quem os adjetivos, aqueles que se conseguir imaginar, nunca são suficientes) defende Graciliano Ramos nesta entrevista disponível no youtube, recorrendo para isso ao recurso de taxar Guimarães Rosa de "macaquice vocabular" e ser "metafisicamente primitivo" (sabe-se lá o que isso quer dizer). Metafisicamente sofisticado, o sr. Reinaldo Azedo-Vendo tem lá suas razões: o grupo editorial Record, que edita o jornalista arvorado a crítico, edita também a obra de Gracilano Ramos. Mais uma placa córnea da carapaça do Jabuti 2010, ou quem sabe carapuça. Toda a fala do sr. Reinaldo Azevedo é um exercício lamentável de maledicência, de venenos destilados através de pretensa erudição literária. Um elogio à obra de Graciliano Ramos (e quem ler isso sabe o que estou falando) numa fala eivada de disparates ideológicos soa paradoxal, e é somente assimilável se se admitir que no país dos medalhões machadianos cabe tudo. Mas o próprio Graciliano, em Memórias do cárcere (por que será que ele foi encarcerado?), fala em "Compreensão de que as diferenças não constituem razão para nos afastarmos, nos odiarmos. Certeza de que não estamos certos, aptidão para enxergarmos pedaços de verdade nos absurdos mais claros. Necessidade de compreender, e se isto é impossível, a pura aceitação do pensamento alheio." (p.73) Mais prudente exercitar-se em Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. 

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Jorge de Lima: Invenção de Orfeu

[Canto III, Poemas Relativos, VII]

Alegria achareis neste meu poema
como poema ilícito, como um
corpo casual ou vão, como a memória
dura e acídula, como um homem se

conhece respirando, ou como quando
se entristece sem causa ou se doendo,
ou se lavando sempre ou comparando-se
às dimensões das coisas relativas;

ou como sente os membros de seu ser,
transmitidos e opacos, e os avós
responsabilizando-se presentes.

São alegrias rápidas. Lugares,
reencontráveis países, becos, passos
sob as chuvas que não vos molharão.

LIMA, Jorge de. Invenção de Orfeu. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d, p.73-74. 

uma busca sem resposta

Esta busca, quando o homem vir deus num grão de areia, eu achei curiosa, e conduziu a um lugar inesperado. O intrigante, contudo, é que parecia, a princípio, outra coisa, um misticismo de manual, encontrar Deus em coisas triviais, uma flor que desabrocha, o sorriso de uma criança, a chuva que cai, clichês facilmente reconhecíveis na religião de superfície e no discurso de auto-ajuda. Porque a crise é inevitável, mas não se encontra Deus: Deus é de quem conseguir pegá-lo

“Viu ainda dois olhos enormes, redondos, saltados e interrogativos ― tinha o olhar de quem tem uma asa ferida ― distúrbio talvez da tiróide, olhos que perguntavam. A quem interrogava ela? a Deus? Ela não pensava em Deus, Deus não pensava nela. Deus é de quem conseguir pegá-lo. Na distração aparece Deus. Não fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas. Era lá tola de perguntar? E de receber um ‘não’ na cara? Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer que ela nem ao menos havia perguntado. Por falta de quem lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim. Existe no mundo outra resposta? Se alguém sabe de uma melhor que se apresente e a diga, estou há anos esperando. Enquanto isso as nuvens são brancas e o céu é todo azul. Para que tanto Deus. Por que não um pouco para os homens.” (Lispector, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.26-27).

A busca conduziu até aqui, e devo registrar que tenho participação nela, pois registrei areia em vez de argila, o que já foi retificado, como se ao ler/digitar um poema insensivelmente fôssemos dando um contorno próprio a ele. Por mais estranho que pareça, a verdade de cada um se revela no trivial cotidiano, no modo de olhar as pessoas e sustentar, por exemplo, no olhar, o que se é naquele momento, ou no modo de se banhar. Dois extremos, o social e o íntimo. É no momento do banho, mais do que no espelho, que se tem um contato íntimo com o que se é: o que a superfície oferece. A água descendo sobre o corpo mostra o que somos, e isso não se explica, é uma coisa que se experimenta. Ver o próprio corpo, aceitá-lo, sabê-lo seu e de mais ninguém, saber que nenhum corpo veio do nada: ele diz também das escolhas. Quem conseguir isso, amar o corpo como um recesso sagrado onde a vida acontece, saberá de Deus sem precisar buscá-lo em grãos de areia: pois todos somos feitos da mesma matéria, e olhados à distância, talvez não passemos mesmo de grãos de areia ante a aparente infinitude do cosmos.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

o sentido da vida

Voltei da sessão de análise de ontem convicta de que não sei qual o sentido da vida, sequer se ele é alcançável por qualquer meio ou recurso ― mas sei que a minha vida tem um. Toda vez que olho em retrospecto e revejo meu percurso acho-o tão improvável, tão cheio de pequenos milagres, que considero mesmo espantoso que eu possa me conhecer. Me vejo como uma sucessão de eus, um entregando o bastão ao outro mas seguindo um pouco junto. Porque se não sei o que vim fazer neste estranho mundo, isso não quer dizer que minha vida seja gratuita. 

terça-feira, 19 de abril de 2011

Olha Maria: Tom Jobim e Milton Nascimento

música: Tom Jobim / letra: Chico Buarque e Vinicius de Moraes

ou talvez não...

Ao contrário do que foi dito no post "suave é a noite", a noite se basta, é suave por si. O seu silêncio promete uma integração com o cosmos pela entrega ao sono, e isso prescinde, independe da presença ou companhia de outro ser. É um equívoco pensar que a companhia humana engrandece a noite: não engrandece nem diminui. A delicada assunção da insignificância ante tudo é antes uma consequência de colocar-se só diante do cosmos, pois a companhia, ao confortar, tira a dimensão dessa insignificância, torna tudo mais inocente. Então a insignificância se dá na solidão, e não tem nada de intolerável. Antes, é bem-vinda. Noite é estar só diante do cosmos.

livros

Chego em casa e deparo-me com uma pequena revolução doméstica: a prateleira de uma estante, que estava meio quebra-não-quebra, cedeu, e encontro vários volumes espalhados pelo chão. Demoro alguns segundos para entender o que se passou. Não adianta, não se consegue domesticar os livros.

infância

Após passar por aqui e por João Cabral de Melo Neto, saiu-me isto, sem qualquer presunção: 

Os pés descalços da infância rural traem sensações confusas: a terra foi pisada com liberdade, da poeira à lama da chuva. Mas os coercitivos sapatos da civilização impuseram uma espécie de corte com essa memória que, hoje percebo, era uma força. Durante certo tempo tive um sonho recorrente: me apanhava em público descalça, sem sapatos, e era uma situação vexatória. Não é difícil ver nesses sonhos a ronda dos fantasmas da pobreza, que aparentemente deixaram um pouco de importunar, ou cederam vez a outros. Como fantasma bom é fantasma morto, preferia aqueles, pois pelo menos podia reconhecer neles minha inocência: ninguém tem culpa de ter nascido pobre. Já continuar pobre lembra alguma espécie de condenação. Os fantasmas de hoje sofisticaram, receberam o selo da cultura: são fantasmas que frequentam o divã, mais embrulhados. A inocência com que tentei prolongar minha infância... ou esse movimento já era consciência da inocência indo embora? Havia na infância alguma coisa de bom que me fez tentar prolongá-la, retardando os passos seguintes. Alguma coisa que traduziria como gostar de lápis de cor, estojos coloridos e caderno novo. É a explicação que encontro para possuir poucos sapatos. 

alguma coisa pra chamar de amor

segunda-feira, 18 de abril de 2011

João Cabral de Melo Neto (Miguel Hernández)

ENCONTRO COM UM POETA

Em certo lugar da Mancha,
onde mais dura é Castela,
sob as espécies de um vento
soprando armado de areia,
vim surpreender a presença,
mais do que pensei, severa,
de certo Miguel Hernández,
hortelão de Orihuela.
A voz desse tal Miguel,
entre palavras e terra
indecisa, como em Fraga
as casas o estão da terra,
foi um dia arquitetura,
foi voz métrica de pedra,
tal como, cristalizada,
surge Madrid a quem chega.
Mas a voz que percebi
no vento da parameira
era de terra sofrida
e batida, terra de eira.
Não era a voz expurgada
de suas obras seletas:
era uma edição do vento,
que não vai às bibliotecas,
era uma edição incômoda,
a que se fecha a janela,
incômoda porque o vento
não censura mas libera.
A voz que então percebi
no vento da parameira
era aquela voz final
de Miguel, rouca de guerra
(talvez ainda mais aguda
no sotaque da poeira;
talvez mais dilacerada
quando o vento a interpreta).
Vi então que a terra batida
do fim da vida de um poeta,
terra que de tão sofrida
acabou virando pedra,
se havia multiplicado
naquelas faces de areia
e que, se multiplicando,
multiplicara as arestas.
Naquela edição do cento
senti a voz mais direta:
igual que árvore amputada, 
ganhara gumes de pedra.

MELO NETO, João Cabral. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.129-130.

suave é a noite...

...quando ela é a companhia perfeita dos sonhos; quando nela o sonho de um braço a quase estender-se sobre o corpo, um braço ao alcance da mão, é a delicada assunção da insignificância ante tudo, tudo mesmo, então uma companhia, mas não qualquer companhia, tornaria essa insignificância tolerável, porque seriam dois seres a dividir a solidão mais própria que alguém pode ter, a solidão da entrega ao sono. Noite é estar só diante do cosmos.

Kafka acerca de Picasso

Femme au Balcon, 1937

"Quando visitava uma exposição de pintura francesa numa galeria de Praga, Franz Kafka ficou diante de várias obras de Picasso, naturezas-mortas cubistas e alguns quadros pós-cubistas. Estava acompanhado na ocasião pelo jovem Gustav Janouch, escritor de quem foi mentor na adolescência e que deixou um dos mais importantes depoimentos sobre o poeta tcheco ― Conversas com Kafka. Janouch comentou que o pintor espanhol distorcia deliberadamente os seres e as coisas. Kafka ponderou que Picasso não pensava desse modo: ‘Ele apenas registra as deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência’.”

CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p.37.

domingo, 17 de abril de 2011

Hugo Scheiber (Hungria, 1873-1950)

Dancer with Guitar
[do blog Nakonxipan]

o silêncio dos livros

o silêncio dessa companhia me acalma

Observatório da Crítica

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Espaço destinado a acompanhar as discussões ocorridas no meio acadêmico e nas páginas dos jornais e revistas sobre o campo da crítica, em suas mais diversas manifestações: literárias, teatrais, cinematográficas, musicais etc. 

mundo árabe em convulsão

 Charge mostra as armas usadas pelos manifestantes do mundo árabe para organizar protestos Mais