Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 8 de abril de 2010

um trecho de "Raízes do Brasil"

"A tentativa de implantação da cultura europeia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem." (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 31).

Obs: este é o parágrafo introdutório de Raízes do Brasil, cuja primeira edição data de 1936. Nas edições seguintes, foi modificado pelo autor. A noção de desterro vai aparecer numa canção célebre assinada pelo seu filho, Francisco Buarque de Holanda, em parceria com Tom Jobim - Sabiá

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Cantar uma sabiá

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Vou deitar à sombra
De uma palmeira
Que já não há
Colher a flor
Que já não dá
E algum amor
Talvez possa espantar
As noites que eu não queria
E anunciar o dia

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Não vai ser em vão
Que fiz tantos planos
De me enganar
Como fiz enganos
De me encontrar
Como fiz estradas
De me perder
Fiz de tudo e nada
De te esquecer

Vou voltar
Sei que ainda vou voltar
Para o meu lugar
Foi lá e é ainda lá
Que eu hei de ouvir cantar
Uma sabiá
Cantar uma sabiá 


Fonte: site oficial de Chico Buarque de Holanda

domingo, 4 de abril de 2010

Millôr


NÓS, OS TEMULENTOS: Guimarães Rosa

NÓS, OS TEMULENTOS

"Entendem os filósofos que nosso conflito essencial e drama talvez único seja mesmo o estar-no-mundo. Chico, o herói, não perquiria tanto. Deixava de interpretar as séries de símbolos que são esta nossa outra vida de aquém-túmulo, tãopouco pretendendo ele próprio representar de símbolo; menos, ainda, se exibir sob farsa. De sobra, afligia-o a corriqueira problemática quotidiana, a qual tentava, sempre que possível, converter em irrealidade. Isto, a pifar, virar e andar, de bar a bar.
Exercera-se num, até as primeiras duvidações diplópicas:  ‘Quando... — levantava doutor o indicador — ... quando eu achar que estes dois dedos aqui são quatro’... Estava sozinho, detestando a sozinhidão. E arejava-o, com a animação aquecente, o chamamento de aventuras. Saiu de lá já meio proparoxítono.
E, vindo Noé, pombinho assim, montado-na-ema, nem a calçada nem a rua olhosa lhe ofereciam latitude suficiente. Com que, casual, por ele perpassou um padre conhecido, que retirou do breviário os óculos, para a ele dizer: — Bêbado, outra vez... — em pito de pastor a ovelha. — É? Eu também... — o Chico respondeu, com, báquicos, o melhor soluço e sorriso.
E, como a vida é também alguma repetição, dali a pouco de novo o apostrofaram: — Bêbado, outra vez? E: — Não senhor... — o Chico retrucou —... ainda é a mesma.
E, mais três passos, pernibambo, tapava o caminho a uma senhora, de paupérrimas feições, que em ira o mirou, com trina espetos. — Feia! — o Chico disse; fora-se-lhe a galanteria. — E você, seu bêbado!? — megerizou a cuja. E, aí, o Chico: — Ah, mas... Eu?... Eu, amanhã, estou bom...
E, continuando, com segura incerteza, deu consigo noutro local, onde se achavam os copoanheiros, com método iam combeber. Já o José, no ultimado, errava mão, despejando-se o preciosíssimo líquido orelha adentro. — Formidável! Educaste-a?  — perguntou o João, de apurado falar. — Não. Eu bebo para me desapaixonar... Mas o Chico possuía outros iguais motivos: — E Eu para esquecer...  Esquecer o quê?  Esqueci.
E, ao cabo de até que fora-de-horas, saíram, Chico e João empunhando o José, que tinha o carro. No que, no ato, deliberaram, e adiaram, e entraram, ora em outra porta, para a despedidosa dose. João e Chico já arrastando o José, que nem a um morto proverbial. — Dois uísques, para nós... — Chico e João pediram — e uma coca-cola aqui para o amigo, porque é ele quem vai dirigir...
E — quem sabe como e a que poder de meios — entraram no auto, pondo-o em movimento. Por poucos metros: porque havia um poste. Com mais o milagre de serem extraídos dos escombros, salvos e sãos, os bafos inclusive. — Qual dos senhores estava na direção? — foi-lhes perguntado. Mas: — Ninguém nenhum. Nós todos estávamos no banco de trás...
E, deixado o José, que para mais não se prezava, Chico e João precisavam vagamente de voltar a casas. O Chico, sinuoso, trambecando; de que valia, em teoria, entreafastar tanto as pernas? Já o João, pelo sim, pelo não, sua marcha ainda mais muito incoordenada. — Olhe lá: eu não vou contar a ninguém onde foi que estivemos até agora... — o João predisse, epilogava. E ao João disse o Chico: — Mas, a mim, que sou seu amigo, você não podia contar?
E, de repente, Chico perguntou a João: — Se é capaz, dê-me uma razão para você se achar neste estado?! Ao que o João obtemperou: — Se eu achasse a menorzinha razão, já tinha entrado em lar — para minha mulher ma contestar...
E, desgostados com isso, João deixou Chico e Chico deixou João. Com o que, este penúltimo, alegre, embora física e metafisicamente só, sentia o universo: chovia-se-lhe. — Sou como Diógenes e as Danaides... — definiu-se, para novo prefácio. Mas, com alusão a João: — É isto... Bêbados fazem muitos desmanchos... — se consolou, num tambaleio. Dera de rodear caminhos, semi-audaz em qualquer rumo. E avistou um avistado senhor e com ele se abraçou: — Pode-me dizer onde é que estou?  Na esquina de 12 de setembro com 7 de outubro.  Deixe de datas e detalhes! Quero saber é o nome da cidade...
E atravessou a rua, zupicando, foi indagar de alguém: — Faz favor, onde é que é o outro lado?  Lá... — apontou o sujeito. — Ora! Lá eu perguntei, e me disseram que era cá...
E retornou, mistilíneo, porém, porém. Tá que caiu debruçado em beira de um tanque, em público jardim, quase com o nariz na água — ali a lua, grande, refletida: — Virgem, em que altura eu já estou!... E torna que, se-soerguido, mais se ia e mais capengava, adernado: pois a caminhar com um pé no meio-fio e o outro embaixo,na sarjeta. Alguém, o bom transeunte, lhe estendeu a mão, acertando-lhe a posição. — Graças a Deus! — deu. — Não é que eu pensei que estava coxo?
E, vai, uma árvore e ele esbarraram, ele pediu muitas desculpas. Sentou-se a um portal, e disse-se, ajuizado: — É melhor esperar que o cortejo todo acabe de passar...
E, adiante mais, outra esbarrada. Caiu: chão e chumbo. Outro próximo prestimou-se a tentar içá-lo. — Salve primeiro as mulheres e as crianças! — protestou o Chico. — Eu sei nadar...
E conseguiu quadrupedar-se, depois verticou-se, disposto a prosseguir pelo espaço o seu peso corporal. Daí, deu contra um poste. Pediu-lhe: — Pode largar meu braço, Guarda, que eu fico em pé sozinho... Com susto, recuou, avançou de novo, e idem, ibidem, itidem, chocou-se; e ibibibidem. Foi às lágrimas: — Meu Deus, estou perdido numa floresta impenetrável!
E, chorando, deu-lhe a amável nostalgia. Olhou com ternura o chapéu, restando no chão: — Se não me abaixo, não te levanto. Se me abaixo, não me levanto. Temos de nos separar, aqui...
E, quando foi capaz de mais, e aí que o interpelaram: — Estou esperando o bonde... — explicou. — Não tem mais bonde, a esta hora. E: — É? Então, por que é que os trilhos estão aí no chão?
E deteve mais um passante e perguntou-lhe a hora. Daí: — Não entendo... — ingrato resmungou. — Recebo respostas diferentes, o dia inteiro.
E não menos deteve-o um polícia: — Você está bebaço borracho!  Estou não estou...  Então, ande reto nesta linha do chão.  Em qual das duas?
E foi de ziguezague, veio de zaguezigue. Viram-no, à entrada de um edifício, todo curvabundo, tentabundo. — Como é que o senhor quer abrir a porta com um charuto?  É... Então, acho que fumei a chave...
E, hora depois, peru-de-fim-de-ano, pairava ali, chave no ar, na mão, constando-se de tranquilo terremoto. — Eu? Estou esperando a vez da minha casa passar, para poder abrir... Meteram-no adentro.
E, forçando a porta do velho elevador, sem notar que a velha cabine se achava para lá em cima, caiu no poço. Nada quebrou. Porém: — Raio de ascensorista! Tenho certeza que disse: — Segundo andar!
E, desistindo do elevador, embriagatinhava escada acima. Pode entrar no apartamento. A mulher esperava-o de rolo na mão. — Ah, querida! Fazendo uns pasteizinhos para mim? — o Chico se comoveu.
E, caindo em si e vendo mulher nenhuma, lembrou-se que era solteiro, e de que aquilo seriam apenas reminiscências de uma antiquíssima anedota. Chegou ao quarto. Quis despir-se, diante do espelho do armário: — Quê?! Um homem aqui, nu pela metade? Sai, ou te massacro!
E, avançando contra o armário, e vendo o outro arremeter também ao seu encontro, assestou-lhe uma sapatada, que rebentou com o espelho nos mil pedaços de praxe. — Desculpe, meu velho. Também, quem mandou você não tirar os óculos? — o Chico se arrependeu.
E, com isso, lançou; tumbou-se pronto na cama; e desapareceu de si mesmo.

ROSA, João Guimarães. Tutaméia: terceiras estórias. Ficção completa, vol. II. Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 1995, p. 623-625.