Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 2 de outubro de 2010

Estado x Religião

A propósito de um e-mail enviado por um amigo, advertindo para o perigo de eleger-se para o Congresso Nacional deputados e senadores com vinculações religiosas, e dado que amanhã será dia de eleição aqui no Brasil, ocorre-me este trecho de Reinhart Koselleck, cuja obra, Crítica e crise, analisa a instauração do Absolutismo e a longa negociação travada para que as guerras civis de religião não matassem tanto ou mais que as guerras contra outros domínios. Era precisa apascentar os ânimos e submeter todos à mesma lei. Esse foi o preço pago para a emergência do Estado moderno. Como tal, o livro de Koselleck é de uma atualidade bastante pertinente, no mínimo para que não se regrida em relação a conquistas históricas concernentes à laicização do poder e do saber. Segue um trecho: "O advento da inteligência burguesa tem como ponto de partida o foro interior privado ao qual o Estado havia confinado seus súditos. Cada passo para fora é um passo em direção à luz, um ato de esclarecimento. O Iluminismo triunfa na medida em que expande o foro interior privado ao domínio público. Sem renunciar à sua natureza privada, o domínio público torna-se o fórum da sociedade que permeia todo o Estado. Por último, a sociedade baterá à porta dos detentores do poder político para, aí também, exigir publicidade e permissão para entrar. A cada passo do Iluminismo, desloca-se o limite da competência, que o Estado absolutista havia tentado traçar cuidadosamente, entre o foro interior moral e a política." (KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Trad. Luciana Villas-Boas Castelo Branco. Rio de Janeiro: EdUERJ; Contraponto, 1999, p.49.)

Rubem Braga: brasileiros em Portugal

A LÍNGUA ― Conta-me Cláudio Mello e Souza. Estando em um café em Lisboa a conversar com dois amigos brasileiros, foram eles interrompidos pelo garçom, que perguntou, intrigado:
― Que raio de língua é essa que estão aí a falar, que eu percebo tudo?

BRAGA, Rubem. Recado de primavera. 8. ed. Rio de Janeiro: Record,2008, p.117.

Rubem Braga: "um sueco em trânsito" (ótimo, certeiro)

O SUECO ― Os problemas do Brasil, as mesquinharias de nossa vida pública, a miséria fundamental de nosso povo, todas essas coisas de repente cansam e desanimam uma pessoa sensível. Evandro Pequeno encontrou uma solução: “Eu sou um sueco em trânsito.”
Não saber de nada, não entender uma palavra do que estão dizendo ou escrevendo por aí, não ter nada a ver com nada, não se sentir responsável por nada (muito menos pela famosa dívida externa), não ter vergonha de nada: ser um sueco em trânsito.
E, se possível, como Evandro fazia, tocar fagote.

BRAGA, Rubem. Recado de primavera. 8. ed. Rio de Janeiro: Record,2008, p.98.

da série "perguntas imprevisíveis"

Um aluno do 6º ano me pergunta se um número equivale a uma palavra. Um número, em sua representação gráfica de número, não por extenso. É que ele precisava escrever alguma coisa com não sei quantas palavras, e aí me perguntou se podia colocar um número como palavra. Um número, em princípio, não seria uma palavra, mas escrito por extenso é. E é claro que número é uma palavra. A gramática escolar de Evanildo Bechara diz, no capítulo referente à questão, "Numeral": "É a palavra de função quantificadora que denota valor definido: 'A vida tem uma só entrada: a saída é por cem portas.' [MM]" Prossegue o autor: "Os numerais propriamente ditos são os cardinais: um, dois, três, quatro etc., e respondem às perguntas quantos?, quantas? Na escrita podem ser representados por algarismos arábicos (1, 2, 3, 4 etc.) ou romanos (I, II, III, IV etc.)." (BECHARA, Evanildo. Gramática escolar da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 2006, p.184). Admitindo-se que algarismo é diferente de palavra, fica então respondida a pergunta do aluno. Uma pergunta que me obriga a pensar sobre o que é uma palavra me leva a deduzir que tenho alunos interessados, que nem sempre mostram tudo que sabem. Ou será isso viagem demais?  Ah, sim: o MM citado é de "Marquês de Maricá".

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Carlos Drummond de Andrade


Abril, 6 ― De boas intenções está calçada a Rua da Reincidência, palmilhada sem vontade, com receio de ferir pés alheios.

ANDRADE, Carlos Drummond de. O observador no escritório. Rio de Janeiro: Record, 1985, p.144. [1963]

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Dante Milano (fechando setembro)

Duplo olhar

A visão interior pode ir mais longe
Que a exterior. Isto disse São Tomás.
E há a visão interior de olhos abertos,
A de quando desvio o olhar do livro
Para um lugar mais livre, mais distante,
E me parece uma visão divina
A paisagem que vejo todo dia.

MILANO, Dante. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p.207.

Sérgio Buarque de Holanda e Tristão de Athayde: uma polêmica

Tristão de Athayde
Sérgio Buarque de Holanda

A obra do Sr. Tristão de Athayde exprime de maneira admirável um dos paradoxos mais sutis e mais consideráveis deste momento. Como pouco entre nós ele soube discernir o aspecto trágico do espírito que anima o melhor das produções da literatura moderna e essa negação da ordem civil, expressa ou dissimulada, em que concluem alguns dos contemporâneos mais ilustres. Sem ter escapado à sedução dos princípios de rebeldia e de languescimento em que se comprazem essas obras, não deixou de compreender e de acentuar o que há de singelo e até de artificioso, muitas vezes, na atitude de negação que nos propõem.
A vida, entretanto, afeiçoou se espírito aos ideais de estabilidade, encarecendo os valores reconhecidos e convergindo o seu pensamento para a exaltação desses valores e daqueles ideais. Todas as páginas destes Estudos, seu último livro, denunciam o firme empenho em nos oferecer um pensamento claro, definitivo, exigente. Sobre a vaidade e o artifício desse propósito dirão, melhor do que nós, algumas das suas próprias palavras. “O temível”, escreve, por exemplo, “o temível é seguir o caminho das seleções quando o impreciso nos atrai, é colocar os marcos da limitação quando sentimos o aceno das coisas que se espraiam indefinidamente.”
Essa passagem é a melhor chave que poderíamos obter para a compreensão do sentido deste livro, das suas excelências e também das suas fraquezas. Ela nos ensina principalmente a sorrir um pouco da imponência dessas “verdades” que nos apregoa o seu autor. E mostra, de mais, a fragilidade dos limites que pretende aceitar este homem sem malícia numa época em que todas as barreiras aparecem sobretudo como convites aos mais arrojados para que as transponham. Sua recusa de seguir o “aceno das coisas que se espraiam indefinidamente” não é tanto uma atitude negativa como uma prova de assentimento àqueles ideais de estabilidade a que se afeiçoou. A tragédia que exprime tal atitude resulta precisamente da inconsistência dessa recusa.
Seria, decerto, muito mais fácil decretar que os princípios de rebeldia são simples anomalias que não ousarão dissipar a integridade dos nossos orgulhosos sistemas filosóficos. A sociedade também possui desses elementos de rebelião e de injustiça, mas ela os relega para além de seus limites. Eles não poderiam evidentemente cooperar na constituição de um organismo político estável. Mas resulta dessa impossibilidade que a cidade moderna não comporta todas as formas de vida social, ela não comporta mesmo as mais importantes.
A consideração desse singular paradoxo, que subsiste na vida política, ilumina certas particularidades do problema moral, mais particularmente do problema cultural e mostra-nos a sua universalidade. As antinomias que hoje se apresentam ao homem desafiarão amanhã, no terreno social, o homem de ação. E mesmo nesse terreno, quem nos diz que o problema ainda não existe?
Isso nos explica muito sobre a hesitação do Sr. Tristão de Athayde, as oposições que ele se empenha em vencer, a sua fraqueza e também ― por que não? ― a sua vaidade. Ele compreendeu bem claramente que a solução final de todas essas antinomias só nascerá de nossa fidelidade a um plano de existência superior e transcendental. Em outras palavras: que só poderá ser uma solução religiosa. A todo instante encontramos nas páginas de seu livro desses acenos indecisos a uma justificação transcendente, dessas exigências de absoluto, desses apelos, enfim, ao “elemento espiritual”, à “mística criadora”, que virá fundir e elevar os aspectos contraditórios de nossa existência. Esse recurso a uma justificação espiritual não é inédito, dele compartilha toda uma classe de pensadores novos com os quais o autor destes Estudos apresenta importantes afinidades. É um processo que não deixa de evocar a fórmula que presidiu à elaboração das grandes Summas medievais. Apenas com esta diferença que nelas o que existia era uma fé em busca de suas justificações, de suas razões ― fides quaerens intellectus ― quando, no caso presente, será antes uma inteligência que quer se apoiar numa base emocional. O Sr. Tristão de Athayde limita-se a inverter o problema que se ofereceu ao doutor Angélico.
Não é admirável, diante disso, nem espantoso, que se incline com insistência para o ponto de vista do catolicismo. O que seria a nós pelo menos interessante é, ao contrário, se não tivesse percebido que a concepção católica do mundo coincide perfeitamente com sua exigência de uma solução dos elementos anárquicos do cristianismo nos princípios que criam e que alimentam a ordem civil, a moral urbana, de uma pacificação impossível do espiritual com o temporal. Nenhuma outra doutrina conviria tão plenamente a um homem que aspira a organizar a sua desordem neste mundo sem recusar subvenções do outro mundo. E que, mesmo independente delas, aí não vierem, desejaria “restabelecer um equilíbrio da vida, disciplinar os demônios da liberdade”.
Agora já se desenha com maior nitidez o problema que o Sr. Tristão de Athayde se propôs resolver ou dirigir para uma solução. Ele pensa que temos ido muito longe no que chama o caminho das diluições. “Chegamos inconscientemente”, diz um trecho admirável de seu Schema, “àquele mesmo estado de virgindade intelectual em que Descartes voluntariamente se colocou.” Realmente nada há tão expressivo da situação a que nos conduziu a desestima sempre mais acentuada em que de há três séculos para hoje vem caindo a dignidade dos valores tradicionais. A propósito, eu poderia citar aqui a explicação que nos dá o escritor francês Mauriac da atual decadência do romance, quando mostra que, para os moços de hoje, em consequência desse descrédito em que caíram todos os valores, já não existem mais conflitos.
Nietzsche chegou a propor o niilismo de seu tempo como prefácio a uma coisa a que chamava de cultura trágica. Seria uma cultura onde a sabedoria, insensível às diversões capciosas da ciência, abraçasse com um olhar imutável todo o quadro do universo e, nessa contemplação, procurasse ressentir o sofrimento eterno com compaixão e com amor, fazer seu o sofrimento eterno. Mas Nietzsche lutava com fervor pelo abandono desses valores e queria mais a recusa das diversões capciosas da ciência. De tudo isso enfim que o Sr. Tristão de Athayde deseja precisamente resguardar, integrar e acentuar em seu projeto de solução, quando nos propõe que se substituam princípios permanentes de construção ao niilismo ou elementarismo de nossos dias. Princípios de construção que só poderão ser justamente esses valores tradicionais que nossa época já não digere.
Estamos, pois, diante desse fenômeno bem característico deste tempo: um tradicionalismo que intimamente descrê das tradições, um dogmatismo que, no fundo, é um ceticismo e, por mais absurdo que possa parecer, um racionalismo que quer ser ao mesmo tempo um misticismo. Ele não compreende, ou não quer compreender, ou finge não compreender, que existe uma censura, uma disjunção fundamental entre o Espírito e a Terra ou, para de suas próprias expressões, entre o “plano das verticalidades” e o “plano das horizontalidades”. Toda a conciliação que se propuser entre esses dois planos não será outra coisa que um hibridismo insólito, uma aglutinação superficial, jamais uma combinação íntima e suscetível de permanência. Não se pode mais hoje, como no tempo de Santo Agostinho, ser ao mesmo tempo e simultaneamente um cidadão do céu e da terra. E o pensamento que realmente quiser importar para a nossa época há de se afirmar sem nenhum receio pelos seus reflexos sociais, por mais detestáveis que estes pareçam. Há de ser essencialmente um pensamento apolítico.
É o que não ousa desejar o Sr. Tristão de Athayde com os seus princípios de construção. E, assim, crente, descrente, dogmático e ao mesmo tempo cético, sem nenhum ponto de apoio cuja solidez ou cujo prestígio lhe mereçam crédito, prefere ao heroísmo dos que se importam com a verdade sem nenhuma preocupação pelas conveniências, este outro heroísmo bem menos considerável de exaltar o ponto de partida a que já é impossível tornar impunemente. E é dessa posição teórica, insustentável e antinatural que o Sr. Tristão de Athayde retirou os tijolos para construir um dogmatismo necessariamente ilusório. Esse instrumento ilegítimo é que utiliza para combater os “homens de antes da guerra”, os “dinamistas” e os partidários de um “primitivismo” entre os quais eu próprio, a meu pesar, me vejo colocado...
Esperei poder falar das excelências deste livro do Sr. Tristão de Athayde; limitei-me a dizer, desajeitadamente, que não poderia considerar de modo diverso uma obra e uma personalidade que eu admiro e que desejaria fossem realmente importantes, fossem imprescindíveis para nossa geração e nosso tempo.

Jornal do Brasil, RJ, 29.09.1928.

Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Organização e introdução Francisco de Assis Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 111-115.

P.S. Esse texto teve como “resposta” o ato público de conversão ao catolicismo de Alceu Amoroso Lima, “Adeus à disponibilidade”, cujo subtítulo foi “Carta a Sérgio Buarque de Holanda” (escrita ao que consta em 1929). Segue um pequeno trecho: “Não vou fazer a você nenhuma dessas narrativas íntimas, que nos primeiros anos da adolescência tanto lisonjeiam nossas vaidades, quando julgamos que os homens realmente se interessam por aquilo que para nós é um problema de vida ou morte. Quero apenas dizer-lhe que não ignoro o que há de irresistível na engrenagem sutil das demissões de nosso próprio eu. Da mesma forma que não ignoro quanto há de delicioso e de confortável na eterna recusa de compromissos. E quanto a beleza foge aos gestos precisos. E quanto a verdade parece ganhar com a ilimitação. E quanto a vida é mais mansa ao sabor dos ventos. E quanto... Mas chega o momento em que sentimos, como você bem sabe, o que excede de nós e não apenas a necessidade do que excede de nós. Vemos então, com outros olhos, os anos de luta para mantermos a disponibilidade gidiana, para guardarmos, não apenas a serenidade mas ao menos a irresponsabilidade do diletantismo ou da incessante evanescência de todos os contrários pelos semelhantes, de todos os semelhantes pelos contrários...” (ATHAYDE, Tristão de. No limiar dos cruzamentos. Revista do Brasil, Rio de Janeiro, Ano 3, n. 6, p. 120, 1987. Número especial dedicado a Sérgio Buarque de Holanda.)

Chico Buarque: momento sublime

Enquanto leio o pai falando de Nietzsche, escuto o filho cantando coisas sublimes acerca do amor. Desconcerta.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

o primeiro sutiã (uma peça publicitária memorável)

P.S. Com exceção da última paródia, do "Sai de Baixo", todas as outras ficaram bem bacanas. Aliás, tive dificuldade de perceber a relação da cena do "humorístico" com a famosa criação de Washington Olivetto.

Caetano Veloso - "Faço no tempo soar minha sílaba"

Recebo de um amigo uma interpretação ótima, pela cantora Célia, em duo com Dino Barioni, da canção "Muito Romântico", de Caetano Veloso, de uma ironia sutil e certeira, essa adorável invenção romântica e moderna.


Não tenho nada com isso, nem vem falar
Eu não consigo entender sua lógica
Minha palavra cantada pode espantar
E a seus ouvidos parecer exótica

Mas acontece que não posso me deixar
Levar por um papo que já não deu
Acho que nada restou pra guardar ou lembrar
Do muito ou pouco que houve entre você e eu

Nenhuma força virá me fazer calar
Faço no tempo soar minha sílaba
Canto somente o que pede pra se cantar
Sou o que soa, eu não douro pílula

Tudo o que eu quero é um acorde perfeito maior
Com todo mundo podendo brilhar num cântico
Canto somente o que não pode mais se calar
Noutras palavras, sou muito romântico

núcleo do sujeito

Essas crianças ainda vão me economizar um bom dinheiro de análise. Hoje, no 6º ano, num texto envolvendo sintaxe e pontuação, saiu alguma coisa sobre a questão do núcleo do sujeito. Um garotinho disse que seria aquilo que sobraria como sujeito depois de tirar todo o acessório, ao que eu respondi "mais ou menos, depende". Aí me lembrei de uma crônica lida faz muito tempo, num manual escolar, de cujo autor não me recordo, mas perfeita para ilustrar a questão. Tratava-se de um sujeito, um comerciante, que queria anunciar a venda de ovos, e encomendou a um letrista (no sentido de "aquele que desenha e/ou pinta letras em fachadas de lojas ou tabuletas") uma tabuleta com os seguintes dizeres (vou citar de memória, talvez não seja esta a frase): "NESTE ESTABELECIMENTO VENDEM-SE OVOS FRESCOS". Então o letrista começa a argumentar: mas por que dizer "neste estabelecimento"? Pois torna-se lógico que só poderia ser ali que os tais ovos frescos eram vendidos. Ficou então "VENDEM-SE OVOS FRESCOS". Novamente o letrista entra em ação: é mais ou menos evidente por si que se aquele era um estabelecimento comercial, os ovos eram vendidos, e não dados, emprestados ou alugados, por exemplo, de forma que o "vendem-se" também poderia sair. Saiu. Ficou, assim, "OVOS FRESCOS". O letrista de novo: mas, logicamente, os ovos vendidos devem ser necessariamente frescos, então não há por que chamar a atenção sobre isso (era um profissional honesto). De forma que restou "OVOS". Mas então veio a pergunta mais importante: mas por que vender OVOS, no fim das contas? A crônica terminava assim, com aquele humor peculiar dos textos que ilustravam os livros didáticos na época em que estudava inocentemente... Com esse estratagema, ilustrei a questão do núcleo do sujeito, afinal "vendem-se ovos", frescos ou não, é intercambiável com "ovos são vendidos", de forma que ovos não só é o núcleo do sujeito da oração inicial como se torna o sujeito da oração final, e afinal tornam-se uma dúvida para o comerciante ― e há algo que só me ocorre agora, enquanto escrevo: o ovo também tem uma espécie de núcleo, a gema no centro da clara, de forma que a crônica talvez tivesse outras camadas, de que então sequer desconfiei. Ou não. Ou seja, da sintaxe para a substância, digo, substantivo. Isso tudo falado assim meio rápido, em linguagem adequada ao público. Aí uma garota me perguntou se eu já havia comido ovos saídos direto da galinha, como se existissem ovos de galinha saídos de algum outro lugar, mas eu entendi, ela queria dizer ovos frescos. Estava mirando já outro tipo de núcleo, outro sujeito. Respondi que sim, afinal eu era/sou do interior, então comia sempre ovos frescos (me furtei de falar que via galinhas e outros bichos sendo mortos para a alimentação caseira). Só que eles perguntaram algo inusitado: se eu já tinha visto algum bicho nascendo. E então me lembrei, na mesma hora, que tinha visto uma bezerra nascendo! (Um aluno ainda falou que eu havia escrito "bezerra" errado no quadro; concordei com ele.) Lembrei de tudo: da repugnância que senti ao ver uma coisa meio indefinida envolvida numa gosma meio esbranquiçada, com sangue no meio (era a placenta, coisa que só vim a saber mais tarde). Mas eu vi, era de manhã, levaram a gente pra ver no curral, era perto de casa. Creio que devo ter ficado vários dias sem comer várias coisas que eventualmente me lembrassem aquela visão espantosa, de vida nascendo. E é curioso que me repugnou mais isso que a morte violenta dos animais a que então assistia, embora ressoem até hoje em meus tímpanos os gritos lancinantes dos porcos que ouvi morrer (não sei se alguma vez tive coragem de ir ver). Lembro-me, entretanto, das galinhas sendo mortas, quando não podiam mais fornecer ovos frescos. O que eu sentia diante daquilo tudo? Não sei, aliás não sei se sentia algo diferente de medo. Voltando às crianças, as de hoje, então alguém brincou dizendo que eu não estaria pensando na morte da bezerra (um dito popular), mas na vida da bezerra. Pode ser. Às vezes desconfio que eles me fazem essas perguntas para gastar o tempo, e a aula passar mais rápido. Mas pode ser curiosidade mesmo. Talvez, de alguma forma, eu quisesse entender melhor a vida que se apresentou a mim, na infância, com uma face tão brutal e violenta.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

entre titubeios e acertos

Entre titubeios e acertos, consigo chegar a um novo nome para o blog, inspirada num poema de Mário Faustino aqui postado faz um tempinho, lindo e transbordante de vida. No mais, segue o estilo que vem mais ou menos dando certo. Estava já me angustiando essa busca de um nome para o blog que pudesse trazer algo de mim sem necessariamente carrear junto meu nome. Creio que a poesia como inspiração é uma escolha acertada. Segue o poema:

...

Juventude —
a jusante a maré entrega tudo —

maravilha do vento soprando sobre a maravilha
de estar vivo e capaz de sentir
maravilhas no vento —
amar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rasto —
maravilha de estar ensimesmado
(a maravilha: vivo!),
tragado pelo vento, assinalado
nos pélagos do vento, recomposto
nos pósteros do tempo, assassinado
na pletora do vento —
maravilha de ser capaz,
maravilha de estar a postos,
maravilha de em paz sentir
maravilhas no vento
e apascentar o vento,
encapelado vento —
mar à vista da ilha,
eternidade à vista
do tempo —
o tempo: sempre o sopro
etéreo sobre os pagos, sobre as régias do vento,
do montuoso vento —
e a terna idade amarga — juventude —
êxtase ao vivo, ergue-se o vento lívido,
vento salgado, paz de sentinela
maravilhada à vista
de si mesma nas algas
do tumultuoso vento,
de seus restos na mágoa
do tumulário tempo,
de seu pranto nas águas do mar justo —
maravilha de estar assimilado
pelo vento repleto
e pelo mar completo — juventude —

a montante a maré apaga tudo —

...

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. p.114-115. 

Juan Ramón Jiménez

O estudante

Sonha, sonha enquanto dormes.
Tudo esquecerás com o dia.

(Dia, alegre aprendizagem
Da grande sabedoria.)

Aprende, aprende. No sonho
Esquecerás o aprendido.

(Sonho, doce aprendizagem
Do definitivo olvido.)

BANDEIRA, Manuel. Poemas traduzidos. In: __. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993, p.419-420. 

Chico Buarque - "Suburbano Coração"


Suburbano coração 
Chico Buarque/1984 

Quem vem lá
Que horas são
Isso não são horas, que horas são
É você, é o ladrão
Isso não são horas, que horas são
Quem vem lá
Blim blem blão
Isso não são horas, que horas são

A casa está bonita
A dona está demais
A última visita
Quanto tempo faz
Balançam os cabides
Lustres se acenderão
O amor vai pôr os pés
No conjugado coração
Será que o amor se sente em casa
Vai sentar no chão
Será que vai deixar cair
A brasa no tapete coração

Quando aumentar a fita
As línguas vão falar
Que a dona tem visita
E nunca vai casar
Se enroscam persianas
Louças se partirão
O amor está tocando
O suburbano coração
Será que o amor não tem programa
Ou ama com paixão?
Mulher virando no sofá
Sofá virando cama coração
O amor já vai embora
Ou perde a condução
Será que não repara
A desarrumação
Que tanta cerimônia
Se a dona já não tem
Vergonha do seu coração 

domingo, 26 de setembro de 2010

Pedro Kilkerry / Cid Campos / Augusto de Campos

CD A fábrica do poema, Adriana Calcanhoto
"O Verme e a Estrela" (Pedro Kilkerry/Cid Campos, part. Augusto de Campos)

Mário Faustino

SONETO ANTIGO

Esse estoque de amor que acumulei
Ninguém veio comprar a preço justo.
Preparei meu castelo para um rei
Que mal me olhou, passando, e a quanto custo.

Meu tesouro amoroso há muito as traças
Comeram, secundadas por ladrões.
A luz abandonou as ondas lassas
De refletir um sol que só se põe

Sozinho. Agora vou por meus infernos
Sem fantasma buscar entre fantasmas.
E marcho contra o vento, sobre eternos

Desertos sem retorno, onde olharás
Mas sem o ver, estrela cega, o rastro
Que até aqui deixei, seguindo um astro.

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. Org. Maria Eugenia Boaventura. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009, p.158.

Nunca é demais lembrar, carece não esquecer

"No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso..." 

ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Círculo do Livro, 1984, p.66.