Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

último post antes de sair de viagem

Será uma semana diferente, sem acesso à internet, sem telefone celular, sem o dia a dia do blog. Mas Cortázar vai junto: “Creio que sei olhar, se é que sei alguma coisa, e que todo olhar goteja falsidade, porque é o que nos arremessa mais para fora de nós, sem a menor garantia.” (As babas do diabo.___. As armas secretas. Trad. Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010, p.74.)

trecho de conversa: ruídos, nuvens, bordas...

“Pensemos: há guerra e luta em Grande sertão, também há guerra e luta em qualquer best seller. Por que a guerra e luta de Rosa é interessante? Arrisco: valem os tempos mortos, as esperas, as hesitações, a ação suspensa, o sensório-motor em xeque, o tempo fora dos gonzos. Não a expectativa pelo que virá, mas circunstâncias que abalam toda e qualquer identidade ou contradição. Momentos em que nós somos inseparáveis, em que somos paisagens. Ruídos, nuvens, bordas... O diabo no redemoinho...”

the interpretation (animação)

minimalismo

Um modo de descansar é o minimalismo ― ater-se ao indispensável, poupar gestos, emoções, palavras. O outro é evitar a rota dos discursos, qualquer coisa que signifique trabalho mental. É claro que ninguém se furta a isso, a mente não para. Mas pode diminuir o ritmo. Principalmente porque o trabalho psíquico é constante, na usina de emoções e sentimentos que constitui cada ser. Esta noite, por exemplo, sonhei coisas familiares (no sentido de dizer respeito à família) numa ótica inusitada. E havia uma carga forte de angústia nos conflitos, cuja densidade se traduzia no esforço de subir e descer escadas.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

descanso

Não encontro adjetivos para o cansaço que percebi em mim ao me apanhar finalmente em casa neste primeiro dia de férias há muito adiadas e desejadas ― dia meia roda, porque afinal hoje ainda tive compromisso de trabalho. Cansaço que de repente pôde ter ensejo, o corpo, anestesiado pela rotina, que se permitiu ser corpo, limitado, frágil, necessitado de repouso, que afinal já começa por esta sensação intensa de corpo e espírito cansado, porque o cansaço, aquele do corpo moído, é já o começo do descanso.

satori (animação)

um curta para brindar o início das férias... mais do que merecidas

a escrita como vida

Sonhava esta noite com o blog, com a interação que este espaço me proporciona, com a escrita, com concordar e divergir ― estou viva, eis tudo. 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

árvores

É claro que há regiões arborizadas no Rio de Janeiro, algumas densamente, tanto que a cidade tem fama de abrigar a maior floresta urbana do mundo. Mas aquele desejado equilíbrio entre árvores e cimento varia muito, muitíssimo, conforme a geografia e o prestígio da região em questão. Há lugares em que o cimento predomina de tal forma que o verão torna-se um suplício. Tudo o que se deseja é uma sombra. E não estranha que a propaganda do Carnaval já esteja a todo vapor... quente ― é preciso mesmo muita mídia para convencer as pessoas de que é sinônimo de prazer e alegria sair pulando por cinco dias sob sol intenso e temperaturas elevadas.

o fim do cinema

“Decreto que vou escrever um estudo de 120 páginas, com epígrafe do Fukuyama, dedicados à seguinte e simples proposta: o cinema acabou. Estamos todos como meninos de castigo. Ainda não tomei todas as minhas notas, mas creio que o fenômeno se deu lá pelo mesmo ano do livro que me inspirou. Como piorou o cinema, meu Senhor! Tudo é muito ruim. O que foi uma sorte para a televisão que melhora a olhos vistos, para quem não é astigmata ou daltônico. É só não mexerem, por pura novidadice, com o raio da 3D que vem emborcando como cruzeiros italianos capitaneados por indivíduos da mesma raça que já nos deu Fellini, Visconti e Sergio Leone. Até o Scorsese, que fez uns dois ou três filmes razoáveis, já embarcou nessa dimensão, e, como numa história de The Twilight Zone, por lá deveria ficar, apenas recuperando cópias de velhas obras-primas esquecidas, que nisso ele é mestre.” Ivan Lessa.

cidade a sol aberto

Diante do calor intenso ao retornar do trabalho, por volta de meio dia, percebi no trajeto uma nova filial de uma conspícua rede de farmácia. Com o sol a pino, um detalhe me chamou a atenção: não havia qualquer marquise na loja, nem mesmo que a justificativa fosse o estacionamento ― o prédio que abriga a loja parecia um cubo, ou uma figura geométrica correlata. Quer dizer, não há intenção de abrigar o cliente ou transeunte nas imediações, seja da chuva ou do sol. Não é a primeira vez que noto isso, um estabelecimento comercial a descurar das marquises. E então me ocorreu que pode ser algo premeditado, não no sentido da economia de uma quantia irrisória de cimento ou mão-de-obra, mas para que o local, em hipótese alguma, venha a abrigar moradores de rua, ou mesmo camelôs. Principalmente os primeiros. A imagem também me remeteu a uma das cenas mais cruéis do livro Não verás país nenhum, de Ignácio de Loyola Brandão ― um grande nada, o sol e o calor intenso tomando conta de tudo.

Jorge de Lima: Livro de Sonetos

O rochedo do sono é tão fechado,
tão pedra de Esaú, tão existido,
que ele cumpre na vida um grande fado,
― o de acolher um Édipo impunido.

Sempre em seu bojo há um anjo adormecido
e um menino num poço debruçado;
o cão noturno late, e o seu latido
é o grito do menino já afogado.

À noite, barba-azul dormindo joga
sete princesas pálidas no poço,
e o poço voracíssimo as engole.

E engole indiferentemente quem se afoga,
― sete pedras atadas ao pescoço
que pedra e amor é o mesmo no seu gole.


Jorge de Lima. Poemas negros. Rio de Janeiro: Record, 2007, p.178.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

se essa rua fosse minha... (doce e suave cantiga da infância)

ficções sociais

Prefiro as pessoas que mentem bem (não necessariamente as que mentem) ― às vezes tão bem, mas tão bem, que nem chego a perceber. Vício adquirido ao frequentar a boa literatura; além do mais, estão me dando a chance de aprender, para quando precisar.  

Walt Whitman

"I become any presence or truth of humanity here"

BLOW-UP (Michelangelo Antonioni)

Em tempos vulgares como o nosso ― de audiência barata ―, assistir Blow-up, um filme antigo, é penetrar num universo sofisticado. Conhecer a gênese literária do filme (um conto de Júlio Cortázar) endossa a aura de tratamento estético de uma tema contemporâneo: o que é a realidade, quando se tornam sucessivos e sobrepostos os filtros e camadas com que ela é dada. Nesse sentido, as lentes do fotógrafo Thomas (David Hemmings), personagem muito bem composto e elaborado, captam a beleza com frieza e distanciamento. Quando a possibilidade de alguma coisa diferente surge nas imagens sucessivamente ampliadas da cena do casal no parque, a ampliação mostra a rarefação da imagem. O fotógrafo retorna e encontra uma prova de que intuiu corretamente, na sequência de imagens, a cena de um crime, mas está sem sua objetiva para registrar a imagem que comprovaria sua intuição. Quando retorna para fazê-lo, a prova não está mais lá ― foi subtraída do seu campo de observação, assim como as imagens captadas por ele no parque, roubadas enquanto ele tentava decifrar o enigma solitariamente no parque. Os dados se completam no mente do fotógrafo e do espectador que o acompanha, mas de mais ninguém. Então, na cena final, na mímica do jogo de tênis, é possível sorrir da imaginação. No parque, as lentes da objetiva, num exercício fino do olhar, flagraram outros lados da beleza. Mas não foi possível decifrá-los. Ampliando-os, sobrepondo-os em camadas de imagens, chegou-se à rarefação, como a sugerir que perto demais tudo se deforma ao olhar. Qual é a distância que a realidade pede para ser vista?
imagem obtida aqui

domingo, 15 de janeiro de 2012

dancing queen

cássia eller forever (imortal no coração da boa música)

Dora Ferreira da Silva

PROCURA-SE

Urgente. Trabalho perigoso
sem salário.
Precisa-se de alguém para desintegrar
um átomo de amor.

É preciso outro Francisco em sua soledade.


Dora Ferreira da Silva. Poesia reunida. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p.360.

La Haine

Em La Haine as cores da liberdade, igualdade e fraternidade cedem ao cinza sombrio da negação violenta dos três símbolos modernos da promessa de um novo homem. Em vez, a queda vertiginosa: "Até aqui está tudo bem, até aqui está tudo bem... Mas o importante não é a queda, é a aterrissagem." No meio da queda, uma pausa para uma anedota búlgara, na falta de expressão melhor.