Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 25 de setembro de 2010

Carlos Drummond de Andrade: "O mundo é grande e pequeno"

Caso do vestido

Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou.

chorou no prato de carne,
bebeu, gritou, me bateu,

me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacasse
de meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,

só para lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,
de colo mui devassado,

mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.

Saí pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.

Vosso pai sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberba
me aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,

última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,
da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado
confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito

de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.
Olhou para mim em silêncio,

mal reparou no vestido
e disse apenas: Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado
e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava

me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Antologia poética. Seleção do autor. 32. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 155-161.
  
“Caso do vestido” é um poema narrativo, com regularidade métrica e estrófica peculiar ― compõe-se de 75 estrofes de 2 versos cada, portanto 75 dísticos, totalizando 150 versos, todos heptassílabos (redondilha maior). O poema está marcado por um ritmo forte, imprimido não só pela regularidade métrica e estrófica como também pela forma dialogada, constituindo-se de um longo diálogo entre uma mulher (a mãe) e suas filhas, falando estas em uníssono, o que, associado ao emprego do pronome possessivo com valor adjetivo na 1ª pessoa do plural para a invocação recíproca das partes em diálogo (“Nossa mãe”, “Minhas filhas”) e deste mesmo pronome na 1ª e 2ª pessoas do plural para a referência a pessoas e objetos próximos (“vosso pai”, “nosso pai”, “vosso berço”, “vossos parentes”), imprime ao poema a característica de uma espécie de canto coletivo, com raízes na tradição oral, a ser entoado, ou recitado, em público. É de notar que, embora não se faça referência ao número de filhas, se são duas, três ou mais, a própria construção do poema remete ao número dois.
Massaud Moisés, ao abordar a poesia lírica, alude ao poema “Caso do vestido” como uma forma bem sucedida de poema narrativo, em que o elemento lírico sobrepuja, como no caso dos poemas narrativos pertencentes ao romanceiro popular que alcançam qualidade poética. Formalmente, o poema em tela não se assemelha a nenhuma das formas poéticas da lírica tradicional ou moderna, conforme tipologia descrita por Massaud Moisés (1997, p.260-263), com exceção do romance, equivalente ibérico da balada européia, caracterizando-se este “[...] pela simplicidade da expressão com que o poeta discorre sobre um assunto terno e tocante, com que desenvolve uma narração que deve ser singela. Esta singeleza e um quê de monotonia, proposital, na expressão, darão ao romance um certo ar de narrativa popular que é a própria alma desta composição. (MOISÉS, Massaud. A criação literária: poesia. 13. ed. revista. São Paulo: Cultrix, 1997, p.262).
Assim, a forma adotada por Carlos Drummond de Andrade para “Caso do vestido” originalmente pertencia à tradição oral, tratando-se, portanto, de uma escolha muito bem acertada, na medida em que forma e conteúdo, neste poema, formam um todo de difícil dissociação.
Estruturalmente, o poema “Caso do vestido” pode ser dividido em três blocos assimétricos, quanto ao número de estrofes, delimitados por aquelas (respectivamente a quarta, a vigésima segunda e a septuagésima quinta) em que a mãe sinaliza para as filhas a chegada do pai, o que poderia interromper o relato. Mas como o pai não chega, e enquanto ele não chega, o relato pode prosseguir. O primeiro bloco tem três estrofes; o segundo, começando na quarta estrofe e terminado na vigésima primeira, dezoito; o terceiro, indo da vigésima segunda até a estrofe final, tem cinquenta e quatro estrofes.
É de notar que os três blocos mantêm entre si uma relação geométrica (em vez de aritmética, por exemplo), grosso modo exponencial, fazendo do poema um crescendo, em que o término da narração, quando a mãe está contando às filhas a volta do marido para casa, depois de longa ausência, em virtude do envolvimento com outra mulher ― a dona do vestido que motiva a narração ―, coincide com a chegada dele em casa, provavelmente após mais um dia de trabalho, o que encerra a narração.
As três primeiras estrofes constituem uma espécie de preâmbulo, em que as filhas indagam à mãe sobre o vestido pendurado na parede. Pressentindo a chegada do marido, a mãe interrompe a narração na quarta estrofe, mas, instada pelas filhas, prossegue. A narração e a iminência da chegada do marido caminham juntas, num crescendo, imbricadas, constituindo a segunda uma marcação para a primeira.  Semanticamente, funcionam como duas camadas que confluem, uma camada narrativa, densa, e uma camada mais tênue, que remete ao elemento lírico. O pranto presente no relato, indício deste elemento, é o prenúncio dos desmedidos sofrimentos pelos quais a mulher passa na terceira parte. Neste ponto entra o vestido. O que vem então é a ruína, a decadência física, a miséria material e espiritual. O marido some no mundo. Ambas as mulheres se arruínam por um homem que, quando se decide por uma delas, “era sempre o mesmo homem, / comia meio de lado / e nem estava mais velho.” 
O poema, pela sua métrica, pela estrofação breve e regular, sugere um movimento de circularidade, de volta, de reincidência, indo ao encontro do “caso” contado, em que há um marido que vai e volta (e vai e volta do trabalho), em que há duas mulheres que sofrem da mesma dor de amor, pelo mesmo homem, finalmente materializado no vestido, cujo uso tornou-se impróprio, para qualquer uma delas. Símbolo de uma ausência, ele pode repousar, como ícone vazio, morto, onde estaria o amor: “Minhas filhas, mas o corpo/ ficou frio e não o veste.// O vestido, nesse prego,/ está morto, sossegado.”

águas de março

Quando Tom Jobim licenciou, por tempo determinado, os direitos autorais de "Águas de Março" para a Coca-Cola houve um disse-me-disse geral: como pode um artista fazer isso, e logo para a Coca-Cola? Não, um artista não pode ganhar dinheiro. Tem que viver de maneira asséptica, ascética, senão o acético vinagre da discurseira corre solto. O curioso é que a Cléo Pires deve ter ganhado muito mais dinheiro expondo seu corpitcho para a Playboy, mas não ouvi ninguém, absolutamente ninguém, reclamar disso. Se isso não for hipocrisia... Segue trecho de uma entrevista concedida à Veja, em que Tom Jobim fala a respeito:

Veja: O Brasil trata bem os seus artistas?
Tom Jobim: O Brasil precisa amar os seus artistas. Ficam dizendo que nós, músicos, somos milionários. Por que não se fala a verdade no Brasil? Por que não se diz quem são os ricos? O rico é a Gal Costa, o Caetano Veloso, o Chico Buarque, o Tom Jobim? Aqui inventam uma porção de coisas, há sempre a interferência muito grande do governo na vida particular do indivíduo. Eles querem saber o que é que você está fazendo, escutar no telefone, aquele negócio todo que tivemos desde 1964. Eu fui preso, o Chico Buarque também, todo mundo foi apanhado em casa. Eu não sou subversivo, pelo contrário, eu sou um sujeito nitidamente da ordem e do progresso. Agora, o que estou vendo aqui não é nem ordem nem progresso, pelo contrário.
Veja: Mas mesmo com essas críticas você continua gostando do Brasil?
Tom Jobim: Sim. Mas é preciso ter lucidez para falar do país. Porque se a pátria é um negócio pelo qual você dá a vida, você morre e você é torturado, o que é que é isso? Isso não é a pátria. Como disse um amigo em Nova York: o meu país é aquele que me deixa viver, que não me fuzila, que não me tortura, que me deixa educar meus filhos, onde posso exercer minha profissão, que deixa eu fazer meus negócios. Você ama, ama, ama a pátria e depois como é que é? Cadê o piano? O Brasil importa metralhadoras de todos os tipos e nós não temos piano para tocar.
Veja: Não há pianos no Brasil?
Tom Jobim: Atenção, juventude, para o meu conselho: a primeira coisa que o garoto deve fazer, se quiser ser músico, é arranjar um contrabandista. Se não for assim, não terá um instrumento decente.
Veja: Você trabalha muito?
Tom Jobim: Trabalho mais do que mereço. Eu sou uma usina de música. Tenho mais de 500 músicas gravadas e faço questão de acompanhar todas as etapas do meu disco. Tem horas que não quero trabalhar, prefiro andar na praia, sair para comprar um jornal, ver uma garota na praia – à distância e com muito respeito –, mas quase não dá, tanto aqui como no exterior.
Veja: Muita gente o criticou por ter cedido Águas de Março para os anúncios da Coca-Cola. Você fica magoado com isso?
Tom Jobim: Há quase dois anos que eu não bebo. Só posso beber café, água e refrigerantes. A Coca-Cola se aproximou de mim para fazer um anúncio, eu achei ótimo, achei que não fazia mal a ninguém, pois vejo todo mundo tomando Coca-Cola. Aí esses meus amigos – entre aspas, Jards Macalé, Antônio Houaiss e Luiz Carlos Vinhas – começaram a dizer que eu tinha vendido o Brasil à Coca-Cola. Essas pessoas resolvem que fazer anúncios para a Coca-Cola é pecado. Eu posso anunciar cachaça, Brahma Chopp, mas não posso cometer o pecado mortal que é anunciar Coca-Cola. Eu não vendi nada para a Coca-Cola. Eu apenas licenciei o mote de Águas de Março. Todo o Brasil pode cantar tranqüilamente esta música. O primeiro contrato foi por seis meses e por aquele anúncio em que eu aparecia, aqui no Brasil, recebi 280.000 cruzados. 
[Entrevista realizada em 23/03/1988. Fonte:  blog Tigre de  Fogo]

após a meia noite

Ontem/hoje, logo após bater meia noite, chego a escrever isso: "Já passa da meia noite, e está chovendo, uma chuva mansa, fina, calma. Gostaria muito de pensar que alguma coisa de Deus está aqui me fazendo companhia." Mas certo pudor (e temor) de falar de coisas tão íntimas e difíceis me contém ― e mesmo meu fuso horário particular não ia registrar a coisa como sábado, 0h25 da madrugada... Mas me embalou a ideia, e fui dormir. Aí sonho mais um daqueles sonhos caóticos, confusos, mas em que consigo discernir claramente alguém me trazendo uma bebê, e essa bebê é ― só pode ser ― o que fui aos 0h25 minutos da vida... Sonhos não são sonsos. Esta semana deparei-me, num elevador, com uma neném muito linda, de seus seis meses, e que me fez recordar, no átimo, o retratinho dessa época que trago comigo, único registro inconteste que tenho da minha inocência. Nele apareço assustada, provavelmente estranhando o fotógrafo. De forma que a visão da neném me fez pensar no que eu seria fora daquele retrato, nos braços da mãe, com o rosto calmo, suave, descansado. Não resisto, pergunto o nome dela, e a mãe responde "Sofia". Belíssima escolha para alguém que um dia será chamada a ser mulher. E se o assunto é "sonhos", na noite anterior havia sonhado, também em meio ao caos e à desorientação, esta fazendo-se conspícua, que entrava numa livraria e abria um livro, creio que de filosofia, mas não compreendia, e isso me angustiava deveras. Pois abrir o livro era claramente buscar orientação em meio à desorientação em que, no sonho, me achava. Já é manhã, mas isso ficará registrado como madrugada, algo muito a ver com o território dos sonhos. "Só à noite enxergamos claro", escreveu Sérgio Buarque de Holanda em 1925, num texto altamente carregado de tintas surrealistas.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

"Ciúme" (Ultraje a Rigor)


Grande sucesso dos anos 80! "Eu quero levar uma vida moderrrrninha, deixar minha menininha sair sozinha, não ser machista e não bancar o possessivo."  Os "erres" a mais são para destacar o sotaque do Roger... Cadê a menininha, Roger? Hã? Hein? Saiu pra comprar cigarros e não voltou? Ou topou casar com seu melhor amigo? Mas, implicâncias à parte, a música é uma graça... "Mas eu me morrrrdo de ciúme, mas eu me morrrrdo de ciúme." Na versão anos 2000, os caras deram uma sossegada, aparecem mais mansinhos, parece que rolou assim um photoshop na discurseira pseudo-pseudo-modernosa de antes, pronunciam o verbo deixar mais baixo, manso, calmo... sei lá, né?, vai que a garota escuta...

"I'm Not There" (Bob Dylan com The Band, 1967)

Não consta registro da canção I'm not there no site oficial do cantor. Para audição, o único registro disponível parece ser a última faixa do segundo CD que compõe a trilha sonora da cinebiografia homônima, por Todd Haynes. No blog Just One More Night, há um bom comentário e informações sobre o soundtrack do filme "I'm Not There" (aqui). Reproduzo do blog: "O disco termina com chave de ouro com a versão da música-título do filme. I'm Not There (1956) gravada com a The Band em 1967 e que não foi usada no disco de 1972, o Basement Tapes, finalmente viu a luz do sol."

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Fernando Pessoa: um pouco de desassossego para fechar o dia

102. (trecho)

A vida é para nós o que concebemos nela. Para o rústico cujo campo próprio lhe é tudo, esse campo é um império. Para o César cujo império lhe é ainda pouco, esse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo. Na verdade, não possuímos mais que as nossas próprias sensações; nelas, pois, que não no que elas vêem, temos que fundamentar a realidade de nossa própria vida.
Isto não vem a propósito de nada.
  
PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006, p.130.

neologismo

desenlance: desfazer o lance. Etimologia: desenlace ("desfazimento de nó ou laçada; afastamento ou libertação do que envolve ou abraça) + lance ("o que acontece, aconteceu ou pode acontecer; episódio, caso, fato, acontecimento"). Significados associados a desenlace: "acabamento, arremate, concluimento, conclusão, desenlaçamento, desenredo, desfecho, despedida, encerramento, encerro, epílogo, êxito, fecho, fim, final, finalização, finda, liquidação, perfazimento, remate, resultado, solução, sucesso, terminação, término, términus, termo (ê), ultimação." Guardo de memória uma fala do Raduan Nassar, numa entrevista lida faz tempo, datada de 1992, de que havia muita gente escrevendo bobagem por aí, cuja contrapartida seriam "orelhas prolixas dispostas a ouvir as maiores lorotas". Naturalmente me incluo entre os que estão a escrever bobagens, sem querer sugerir, naturalmente, a contraparte indicada na entrevista. Fonte dos significados assinalados entre parênteses: Dicionário Houaiss da língua portuguesa.

"Positively 4th Street" (Bob Dylan/Bryan Ferry acoustic cover)

"It's All Over Now, Baby Blue" (cover by Bryan Ferry)

"It's All Over Now, Baby Blue" (cover by Van Morrison)

Antonio Candido e a crítica literária

“Na verdade ̶ diz Antonio Candido ̶ abrangemos coisas demais sob o rótulo de crítica. Propriamente dita, ela talvez seja, antes de tudo, apreciação de cunho pessoal, como a desenvolveu o jornalismo no século XIX. Se não quisermos dar demasiada extensão ao termo, seria conveniente, para clareza das posições, distingui-lo, se não na prática, ao menos em princípio, da estilística, da história, da teoria, da erudição e da estética literária. Em cada uma dessas, o chamado ‘coeficiente humanístico’, isto é, a quota de subjetivismo em toda investigação intelectual, pode esbater-se a favor dos rigores técnicos; no limite, poder-se-ia mesmo admitir, nelas, a redução total do arbítrio. Mas na crítica propriamente dita, este é não apenas inevitável, mas recomendável e benéfico. Para escândalo de muitos, digamos que a crítica nutrida do ponto de vista pessoal de um leitor inteligente ̶ o malfadado ‘impressionismo’ ̶ é a crítica por excelência e pode ser considerada [...] aventura do espírito entre livros. Se for eficaz, estará assegurada a ligação entre a obra e o leitor, a literatura e a vida cotidiana  sem prejuízo do trabalho de investigação erudita, análise estrutural, filiações genéticas, interpretação simbólica, atualmente preferidas pelo investigador de literatura, prestes a envergar de novo a toga do retórico. Inversamente, se ela não existir, perder-se-á este ligamento vivo, e os críticos serão especialistas, no sentido que a palavra assumiu na ciência e na técnica. Ora, isto poderia ser riqueza de um lado, mas, de outro, empobrecimento essencial, pois as águas ondulantes da literatura revelam muitos dos seus arcanos aos barcos ligeiros, mais do que à perspectiva solene dos couraçados.”

CANDIDO, Antonio. Um impressionismo válido. In:___. Textos de intervenção. Seleção, apresentação e notas Vinicius Dantas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002, p.46, destaques meus. Texto publicado originalmente em 1958.



VEJA — E a crítica literária em jornais e revistas?
CANDIDO — No Brasil, até trinta anos atrás, a crítica se fazia em artigos de cinco a dez páginas nos rodapés dos jornais, semanalmente. Escritos por pessoas intelectualmente sérias, produziam uma visão empenhada, que ao mesmo tempo informava e formava o leitor. Isso acabou. O último crítico desse tipo foi Wilson Martins [...].

VEJA — O aparecimento da crítica universitária contribuiu para isso?
CANDIDO — Sim. E o rodapé revelou-se insuficiente face às suas exigências. Se, de um lado, ela se fortaleceu, através da publicação de livros e revistas especializadas em crítica literária, de outro se enfraqueceu, com o êxodo dos universitários. O vazio nos jornais e revistas passou, então, a ser preenchido através do colunismo literário ̶― a pessoa recebe o material enviado pelos próprios editores, retira uma ou outra frase e faz sua coluna. Não há dúvida de que isso é muito útil para informar o público, e não vejo mal nenhum nisso. O caso é que se sente falta de uma nova fórmula, curta mas com tônus, músculos críticos mais acentuados.

CANDIDO, Antonio. Nos limites do possível. Veja, São Paulo, n. 371, p. 3-6, 15 out. 1975. Entrevista concedida a João Marcos Coelho.

Manuel Bandeira: um poema musicado

Baladilha arcaica

Na velha torre quadrangular
Vivia a Virgem dos Devaneios...
Tão alvos braços... Tão lindos seios...
Tão alvos seios por afagar...

A sua vista não ia além
Dos quatro muros que a enclausuravam,
E ninguém via ― ninguém, ninguém ―
Os meigos olhos que suspiravam.

Entanto fora, se algum zagal,
Por noites brancas de lua cheia,
Ali passava, vindo do val,
Em si dizia: ― Que torre feia!

Um dia a Virgem desconhecida
Da velha torre quadrangular
Morreu inane, desfalecida,
Desfalecida de suspirar...

BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 20. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p.96.

Uma boa surpresa: encontrei uma versão musicada do poema, pela cantora Ana Cristina ― segue o link da Rádio UOL (aqui). Site oficial da cantora (aqui).