Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Mário Faustino - [JUVENTUDE]


...

Juventude —
a jusante a maré entrega tudo —

maravilha do vento soprando sobre a maravilha
de estar vivo e capaz de sentir
maravilhas no vento —
amar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rasto —
maravilha de estar ensimesmado
(a maravilha: vivo!),
tragado pelo vento, assinalado
nos pélagos do vento, recomposto
nos pósteros do tempo, assassinado
na pletora do vento —
maravilha de ser capaz,
maravilha de estar a postos,
maravilha de em paz sentir
maravilhas no vento
e apascentar o vento,
encapelado vento —
mar à vista da ilha,
eternidade à vista
do tempo —
o tempo: sempre o sopro
etéreo sobre os pagos, sobre as régias do vento,
do montuoso vento —
e a terna idade amarga — juventude —
êxtase ao vivo, ergue-se o vento lívido,
vento salgado, paz de sentinela
maravilhada à vista
de si mesma nas algas
do tumultuoso vento,
de seus restos na mágoa
do tumulário tempo,
de seu pranto nas águas do mar justo —
maravilha de estar assimilado
pelo vento repleto
e pelo mar completo — juventude —

a montante a maré apaga tudo —

...

FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. p.114-115. Mário Faustino faleceu em 1962, aos 32 anos de idade, num acidente aéreo.

GPS

No dia 11 de setembro de 2001, eu me encontrava trabalhando na Prefeitura Municipal de Cachoeiro de Itapemirim, já então mais como "Assessora de Assuntos Aleatórios" do que na função inicial mediante a qual havia ingressado por concurso. E sabia que aquilo seria passageiro. Bem, estávamos todos nos preparando para sair em uma visita de campo, e alguém sinalizou, por volta das 10 da manhã, que tinha alguma coisa estranha acontecendo, a televisão estava passando umas imagens esquisitas. Sei lá, não sou muito de televisão, olhei aquilo rápido, e imediatamente o grupo saiu para o campo. No local, na condição de AAA, foi-me confiada a  guarda do GPS, do qual de repente me distraí. Menos de cinco minutos dentro do carro para voltar, e o Secretário pergunta pelo GPS. Eu: "não sei; ah, sim, acho que coloquei em cima do carro". "Menina, você não tem mesmo juízo...". E todo mundo kakakakakakakaka, eu mais que todos. Tratava-se de um aparelho caro, não dava para perder assim. Parou-se imediatamente o carro, e por milagre o GPS lá estava, quietinho. Eu ainda ri muito, e acho que estou rindo disso até hoje. Bem, naquele dia trágico, da queda das torres gêmeas, o mundo ficou assim um pouco sem seu GPS, e muitas vidas se perderam por isso, no atentado e posteriormente, em virtude dos seus desdobramentos, pagando caríssimo por algo de que eram inocentes. Perder um aparelho de GPS é infinitamente menos sem importância do que perder o que um GPS, metaforicamente, pode dar. Felizmente, desde então, meu GPS tem funcionado bem, obrigada, algumas turbulências de quando em vez. Já o do mundo, lamentavelmente, não dá pra saber sequer se foi encontrado, ou se algum dia de fato funcionou.

Constelação de satélites GPS  - http://www.fc.up.pt/lic_eg/

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Edital de Incineração!?

Dando um "google" em mim mesma, descubro-me associada a um curioso "Edital de Incineração". Penso: será que já morri e esqueceram de me contar? Hahahahaha... Não, deve ser outra coisa: alguma empresa funerária me incluiu inadvertidamente na sua listagem de clientes eventuais, afinal já passei dos 40, é bom ir pensando nessas coisas desagradáveis... Mas não, ainda não é isso. É uma coisa mais simples, besta até: tempos atrás, fiz um concurso público, daqueles que te deixam "fulo da vida", quando se descobre, in media res, que um dos candidatos é autor de um dos títulos indicados na bibliografia, isso lá na Bahia, num lugar chamado Vitória da Conquista, que para mim foi antes "conquista da derrota". Coube-me um honroso segundo lugar no tal concurso, cuja vaga ficou já se sabe para quem... Voltei cabisbaixa, acabrunhada, e jurei que concurso na Bahia nunca mais. Bem, mas a lição disso tudo é que o passado, mais dia menos dia, vira uma grande piada, e podemos confortavelmente rir de nossas derrotas e fracassos. Por via das dúvidas, salvei o tal edital, afinal ele acaba de salvar meu dia.