São Bernardo talvez seja o meu livro preferido, o que li e releio com mais prazer. Quando fui trabalhá-lo no ensino médio, ao tentar elaborar uma lista de questões "norteadoras" para os alunos, percebi que o livro era quase inesgotável, tantas as entradas. Nesse percurso, aprendi a gostar de Paulo Honório. É doloroso o modo deformado com que ele acaba por ver a si próprio e aos seus semelhantes. E daí também se percebe o quanto, apesar de negar, Graciliano Ramos tirou proveito das vanguardas. Também o fato de dedicar dois capítulos, supostamente perdidos, a discutir como seria a fatura do livro, é notadamente moderno ― salvo engano, enunciado e enunciação convergem mais de uma vez no percurso do texto e da leitura. Muita tinta já correu sobre esse casal ― fazendo de Madalena quase sempre um objeto que serviria aos interesses econômicos de Paulo Honório ― algumas leituras sofisticadas, outras resvalando para a vulgaridade. Mas negar a Paulo Honório um fiapo que seja de amor por Madalena não é brutalizá-los ainda mais? Pois ele claramente fez uma escolha, entre a professora lourinha e D. Marcela, vizinha de posses e filha do juiz, pronta a ser escolhida como a fêmea reprodutora (pelos atributos físicos e pela conjugação de interesses políticos e econômicos). Paulo Honório recua, se encanta por Madalena, e trata logo de trazê-la, na condição de esposa, para a fazenda, onde descobre horrorizado que não conhecia a mulher com quem apressadamente se casara. A suspeita, logo confirmada, de que Madalena era uma "intelectual" deixa-o assustado e possesso, e por mais que ambos ainda tentassem aparar as arestas (não sei, estou lembrando do enredo assim por alto), a partir daí o casamento não tinha mais salvação. Intelectual era uma condição inaceitável para uma mulher escolhida, não sem algum afeto, para ser progenitora, a mãe do herdeiro. Foi uma armadilha em que ambos caíram, ao acreditarem que com boas intenções contornam-se diferenças e edifica-se um lar. Daí o caráter trágico da obra, a confissão resignada e infeliz de Paulo Honório de que se lhes fosse dada outra chance, os mesmos erros seriam cometidos. Fatalismo? Difícil saber. O que é certo é que se trata de uma obra-prima, talvez o melhor livro que Graciliano escreveu.
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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