Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 4 de abril de 2010

NÓS, OS TEMULENTOS: Guimarães Rosa

NÓS, OS TEMULENTOS

"Entendem os filósofos que nosso conflito essencial e drama talvez único seja mesmo o estar-no-mundo. Chico, o herói, não perquiria tanto. Deixava de interpretar as séries de símbolos que são esta nossa outra vida de aquém-túmulo, tãopouco pretendendo ele próprio representar de símbolo; menos, ainda, se exibir sob farsa. De sobra, afligia-o a corriqueira problemática quotidiana, a qual tentava, sempre que possível, converter em irrealidade. Isto, a pifar, virar e andar, de bar a bar.
Exercera-se num, até as primeiras duvidações diplópicas:  ‘Quando... — levantava doutor o indicador — ... quando eu achar que estes dois dedos aqui são quatro’... Estava sozinho, detestando a sozinhidão. E arejava-o, com a animação aquecente, o chamamento de aventuras. Saiu de lá já meio proparoxítono.
E, vindo Noé, pombinho assim, montado-na-ema, nem a calçada nem a rua olhosa lhe ofereciam latitude suficiente. Com que, casual, por ele perpassou um padre conhecido, que retirou do breviário os óculos, para a ele dizer: — Bêbado, outra vez... — em pito de pastor a ovelha. — É? Eu também... — o Chico respondeu, com, báquicos, o melhor soluço e sorriso.
E, como a vida é também alguma repetição, dali a pouco de novo o apostrofaram: — Bêbado, outra vez? E: — Não senhor... — o Chico retrucou —... ainda é a mesma.
E, mais três passos, pernibambo, tapava o caminho a uma senhora, de paupérrimas feições, que em ira o mirou, com trina espetos. — Feia! — o Chico disse; fora-se-lhe a galanteria. — E você, seu bêbado!? — megerizou a cuja. E, aí, o Chico: — Ah, mas... Eu?... Eu, amanhã, estou bom...
E, continuando, com segura incerteza, deu consigo noutro local, onde se achavam os copoanheiros, com método iam combeber. Já o José, no ultimado, errava mão, despejando-se o preciosíssimo líquido orelha adentro. — Formidável! Educaste-a?  — perguntou o João, de apurado falar. — Não. Eu bebo para me desapaixonar... Mas o Chico possuía outros iguais motivos: — E Eu para esquecer...  Esquecer o quê?  Esqueci.
E, ao cabo de até que fora-de-horas, saíram, Chico e João empunhando o José, que tinha o carro. No que, no ato, deliberaram, e adiaram, e entraram, ora em outra porta, para a despedidosa dose. João e Chico já arrastando o José, que nem a um morto proverbial. — Dois uísques, para nós... — Chico e João pediram — e uma coca-cola aqui para o amigo, porque é ele quem vai dirigir...
E — quem sabe como e a que poder de meios — entraram no auto, pondo-o em movimento. Por poucos metros: porque havia um poste. Com mais o milagre de serem extraídos dos escombros, salvos e sãos, os bafos inclusive. — Qual dos senhores estava na direção? — foi-lhes perguntado. Mas: — Ninguém nenhum. Nós todos estávamos no banco de trás...
E, deixado o José, que para mais não se prezava, Chico e João precisavam vagamente de voltar a casas. O Chico, sinuoso, trambecando; de que valia, em teoria, entreafastar tanto as pernas? Já o João, pelo sim, pelo não, sua marcha ainda mais muito incoordenada. — Olhe lá: eu não vou contar a ninguém onde foi que estivemos até agora... — o João predisse, epilogava. E ao João disse o Chico: — Mas, a mim, que sou seu amigo, você não podia contar?
E, de repente, Chico perguntou a João: — Se é capaz, dê-me uma razão para você se achar neste estado?! Ao que o João obtemperou: — Se eu achasse a menorzinha razão, já tinha entrado em lar — para minha mulher ma contestar...
E, desgostados com isso, João deixou Chico e Chico deixou João. Com o que, este penúltimo, alegre, embora física e metafisicamente só, sentia o universo: chovia-se-lhe. — Sou como Diógenes e as Danaides... — definiu-se, para novo prefácio. Mas, com alusão a João: — É isto... Bêbados fazem muitos desmanchos... — se consolou, num tambaleio. Dera de rodear caminhos, semi-audaz em qualquer rumo. E avistou um avistado senhor e com ele se abraçou: — Pode-me dizer onde é que estou?  Na esquina de 12 de setembro com 7 de outubro.  Deixe de datas e detalhes! Quero saber é o nome da cidade...
E atravessou a rua, zupicando, foi indagar de alguém: — Faz favor, onde é que é o outro lado?  Lá... — apontou o sujeito. — Ora! Lá eu perguntei, e me disseram que era cá...
E retornou, mistilíneo, porém, porém. Tá que caiu debruçado em beira de um tanque, em público jardim, quase com o nariz na água — ali a lua, grande, refletida: — Virgem, em que altura eu já estou!... E torna que, se-soerguido, mais se ia e mais capengava, adernado: pois a caminhar com um pé no meio-fio e o outro embaixo,na sarjeta. Alguém, o bom transeunte, lhe estendeu a mão, acertando-lhe a posição. — Graças a Deus! — deu. — Não é que eu pensei que estava coxo?
E, vai, uma árvore e ele esbarraram, ele pediu muitas desculpas. Sentou-se a um portal, e disse-se, ajuizado: — É melhor esperar que o cortejo todo acabe de passar...
E, adiante mais, outra esbarrada. Caiu: chão e chumbo. Outro próximo prestimou-se a tentar içá-lo. — Salve primeiro as mulheres e as crianças! — protestou o Chico. — Eu sei nadar...
E conseguiu quadrupedar-se, depois verticou-se, disposto a prosseguir pelo espaço o seu peso corporal. Daí, deu contra um poste. Pediu-lhe: — Pode largar meu braço, Guarda, que eu fico em pé sozinho... Com susto, recuou, avançou de novo, e idem, ibidem, itidem, chocou-se; e ibibibidem. Foi às lágrimas: — Meu Deus, estou perdido numa floresta impenetrável!
E, chorando, deu-lhe a amável nostalgia. Olhou com ternura o chapéu, restando no chão: — Se não me abaixo, não te levanto. Se me abaixo, não me levanto. Temos de nos separar, aqui...
E, quando foi capaz de mais, e aí que o interpelaram: — Estou esperando o bonde... — explicou. — Não tem mais bonde, a esta hora. E: — É? Então, por que é que os trilhos estão aí no chão?
E deteve mais um passante e perguntou-lhe a hora. Daí: — Não entendo... — ingrato resmungou. — Recebo respostas diferentes, o dia inteiro.
E não menos deteve-o um polícia: — Você está bebaço borracho!  Estou não estou...  Então, ande reto nesta linha do chão.  Em qual das duas?
E foi de ziguezague, veio de zaguezigue. Viram-no, à entrada de um edifício, todo curvabundo, tentabundo. — Como é que o senhor quer abrir a porta com um charuto?  É... Então, acho que fumei a chave...
E, hora depois, peru-de-fim-de-ano, pairava ali, chave no ar, na mão, constando-se de tranquilo terremoto. — Eu? Estou esperando a vez da minha casa passar, para poder abrir... Meteram-no adentro.
E, forçando a porta do velho elevador, sem notar que a velha cabine se achava para lá em cima, caiu no poço. Nada quebrou. Porém: — Raio de ascensorista! Tenho certeza que disse: — Segundo andar!
E, desistindo do elevador, embriagatinhava escada acima. Pode entrar no apartamento. A mulher esperava-o de rolo na mão. — Ah, querida! Fazendo uns pasteizinhos para mim? — o Chico se comoveu.
E, caindo em si e vendo mulher nenhuma, lembrou-se que era solteiro, e de que aquilo seriam apenas reminiscências de uma antiquíssima anedota. Chegou ao quarto. Quis despir-se, diante do espelho do armário: — Quê?! Um homem aqui, nu pela metade? Sai, ou te massacro!
E, avançando contra o armário, e vendo o outro arremeter também ao seu encontro, assestou-lhe uma sapatada, que rebentou com o espelho nos mil pedaços de praxe. — Desculpe, meu velho. Também, quem mandou você não tirar os óculos? — o Chico se arrependeu.
E, com isso, lançou; tumbou-se pronto na cama; e desapareceu de si mesmo.

ROSA, João Guimarães. Tutaméia: terceiras estórias. Ficção completa, vol. II. Nova Aguilar: Rio de Janeiro, 1995, p. 623-625.  

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