Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 28 de fevereiro de 2010

Chapeuzinho Vermelho e Dom Quixote num conto de Guimarães Rosa

FITA VERDE NO CABELO
(Nova velha estória)

Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que esperavam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam. Todos com juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por enquanto. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita verde inventada no cabelo.
Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha um doce em calda, e o cesto estava vazio, que para buscar framboesas.
Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores, que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo. Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo. Então, ela, mesma, era quem se dizia: – “Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita verde no cabelo, o tanto que a mamãe me mandou”.  A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são.
E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e longo, e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras, sua sombra também vindo-lhe correndo, em pós. Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeiinhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa. Vinha sobejadamente.
Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respondeu, quando ela, toque, toque, bateu:
“Quem é?”
“Sou eu...” – e Fita-Verde descansou a voz. – “Sou sua linda netinha, com cesto e pote, com a fita verde no cabelo, que a mamãe me mandou.”
Vai, a avó, difícil, disse: – “Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te abençoe.”
Fita-Verde assim fez, e entrou e olhou.
A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo: – “Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto é tempo.”
Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:
“Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão trementes!”
“É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta...” – a avó murmurou.
“Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!”
“É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta...” – a avó suspirou.
“Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado, pálido?”
“É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha netinha...” – a avó ainda gemeu.
Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela primeira vez.
Gritou: – “Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!...”
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.

ROSA, João Guimarães. Ave palavra. In: Ficção completa, v. 2. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 981-982.

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