Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 6 de março de 2013

Mário Quintana

Crime & castigo

O remorso é quando o filme (silencioso) da memória põe-se a repetir a mesma cena e fica o pobre ator a representá-la para sempre.
Um exemplo? Aí vai ele. É um simples faz de conta: não te assustes. Estás à cabeceira da tua velha tia Filomena e eis que resolves apressar-lhe a herança. Tinhas de dar-lhe cinco gotas de meia em meia hora e dá-lhes cinquenta de supetão. Ora, o que vês na tela implacável é a contagem das primeiras gotas inocentes... e agora não podes, não podes nunca mais parar!
Será isso o inferno? Esse inevitável mecanismo de repetição?
Em todo caso, todos já devem estar mais ou menos preparados para esses requintes infernais, graças àquele famoso disco em que o cantor repete umas 37 ou 38 vezes, sem ao menos variar de entonação: ― Eu te amo! Eu te amo! Eu te...
Neste ponto, um anjo segreda-me sonsamente ao ouvido:
― Mas quem sabe se a gravação não estará com defeito?

Mário Quintana. A vaca e o hipogrifo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012, p.225. 

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