Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 16 de novembro de 2025

Ana Martins Marques

mesa

mais importante que ter uma memória é ter uma mesa
mais importante que já ter amado um dia é ter
uma mesa sólida
uma mesa que é como uma cama diurna
com seu coração de árvore, de floresta
é importante em matéria de amor
não meter os pés pelas mãos
mas mais importante é ter uma mesa
porque uma mesa é uma espécie de chão que apoia
os que ainda não caíram de vez

MARQUES, A. M. A vida submarina. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

sábado, 15 de novembro de 2025

Lô Borges (1952 - 2025)

Depois de quase duas semanas, a morte de Lô Borges consegue encontrar um lugar de apaziguamento em mim. Lô Borges e Milton Nascimento criaram, junto a uma trupe de compositores e letristas talentosíssimos, o movimento musical que entrou para a história da MPB como Clube da Esquina, história muito bem contada no livro "Os sonhos não envelhecem". Dentre as muitas canções de Lô Borges, "Trem de Doido" ocupa um lugar especial, por fazer parte do movimento antimanicomial no Brasil. Mas são tantas outras canções que aprecio ouvir que se trata de uma escolha quase arbitrária. Eu não sabia que gostava tanto de você, Lô. Para sempre vou te amar.

sábado, 3 de maio de 2025

ELVIRA VIGNA - "Como se estivéssemos em palimpsesto de putas"

PARTE ALGUMA - Ana Martins Marques

Não te enganes: viajar é aborrecido. 

Num ponto, ao menos, todos os lugares 

se parecem: neles já se passou 

algo terrível. 

As viagens cansam 

e são tristes. 

Viajando apenas constatamos 

a repetição tediosa do que existe. 

Pois para onde quer que compremos passagem 

levamos a nós mesmos na bagagem. 

Viajar é conduzir o corpo 

esse comboio imundo  

a um estéril atrito com o mundo 

e depois passar o dia inteiro 

usando a língua como quem usa dinheiro. 

Nem a página em branco dos desertos 

nem as savanas e sua promessa de aventura 

substituem uma hora de leitura. 

Mesmo as longas praias e as montanhas 

mesmo os sítios inflacionados de história 

mesmo as pirâmides os oráculos a arte 

e o lugar preciso para se ver 

do melhor ângulo 

o sol se pôr como se põe em toda parte 

serão depois riscados da memória. 

Mais vale afinal ficar em casa 

se é que se tem uma 

e enviar-te este postal 

de parte alguma. 

 

MARQUES, Ana Martins. Risque esta palavra: poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p.56-57.