Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 3 de maio de 2025

ELVIRA VIGNA - "Como se estivéssemos em palimpsesto de putas"

PARTE ALGUMA - Ana Martins Marques

Não te enganes: viajar é aborrecido. 

Num ponto, ao menos, todos os lugares 

se parecem: neles já se passou 

algo terrível. 

As viagens cansam 

e são tristes. 

Viajando apenas constatamos 

a repetição tediosa do que existe. 

Pois para onde quer que compremos passagem 

levamos a nós mesmos na bagagem. 

Viajar é conduzir o corpo 

esse comboio imundo  

a um estéril atrito com o mundo 

e depois passar o dia inteiro 

usando a língua como quem usa dinheiro. 

Nem a página em branco dos desertos 

nem as savanas e sua promessa de aventura 

substituem uma hora de leitura. 

Mesmo as longas praias e as montanhas 

mesmo os sítios inflacionados de história 

mesmo as pirâmides os oráculos a arte 

e o lugar preciso para se ver 

do melhor ângulo 

o sol se pôr como se põe em toda parte 

serão depois riscados da memória. 

Mais vale afinal ficar em casa 

se é que se tem uma 

e enviar-te este postal 

de parte alguma. 

 

MARQUES, Ana Martins. Risque esta palavra: poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p.56-57.