Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

belle époque carioca: Lapa / Pasárgada (Manuel Bandeira)

Entre as leituras de obrigação do doutorado, deparei-me com o livro de memórias de Luís Martins, Noturno da Lapa, o melhor itinerário para quem quer conhecer o que foi a vida noturna e boêmia da Lapa nos anos 30. Martins teve uma vida movimentada, caiu em desgraça com o governo Vargas por conta de seu romance Lapa, e foi se refugiar em São Paulo, na fazenda de Tarsila do Amaral, com quem se casou. O trecho que segue é interessante por assinalar o fim da belle époque brasileira, quando Luis Martins começa a frequentar a Lapa:

"Ao contrário do que aconteceu na Europa ... no Brasil, país de economia rudimentar, que até bem pouco tempo tudo importava ... a belle époque foi um reflexo tardio da européia, tendo durado até 1930, ano da revolução política que derrubou a República Velha e fez sentir, com maior dramaticidade, os efeitos da grande crise do café. ... A belle époque brasileira (ou carioca, se o quiserem), são os vinte e cinco anos que vão do governo de Rodrigues Alves à deposição de Washington Luís. No tempo, portanto, em que eu, meninote e adolescente, me perdia em excursões solitárias pelas ruas da Lapa, essa belle époque ia chegando ao fim. Ora, mais ou menos por essa época, exatamente nesse período, um grupo ilustre, que reunia algumas das figuras mais brilhantes e expressivas do modernismo brasileiro, antes e depois da Semana de Arte Moderna, enchia, com o tumulto de sua mocidade inquieta, os clubes noturnos, os cabarés, os botequins, as rues chaudes do famoso bairro. Eu tenho para mim que foi esse grupo que verdadeiramente “descobriu” a Lapa e criou sua legenda romântica de versão montmartriana dos trópicos. Uns dez anos antes de nós. Chamavam-se, esses boêmios de talento, Raul de Leôni, Ribeiro Couto, Jaime Ovalle, Caio de Mello Franco, Di Cavalcanti, Oswaldo Costa. Nos últimos tempos, Sérgio Buarque de Holanda e Dante Milano, os benjamins da turma. E, em fugazes aparições, aparece, esquivo, intermitente e raro, porque a saúde frágil e comprometida não lhe permitia excessos de vida desregrada, Manuel Bandeira, que morava no Curvelo, no morro de Santa Teresa ... Aliás Ribeiro Couto já morava no Curvelo, antes mesmo de para lá se mudar o grande poeta de Libertinagem, o que este fez em 1920, depois que perdeu o pai." (Noturno da Lapa, 2004, p. 49-51).

Há uma sugestão interessante, que li num crítico autorizado na obra de Manuel Bandeira, de que a Pasárgada do poema na verdade seria uma imagem mítica da própria Lapa, quer dizer, a Pasárgada que todos nós aprendemos a projetar no terreno da utopia talvez fosse a elaboração de experiências vividas na concretude de uma vida noturna fora do radar das moças de família. E vividas de forma intermitente, dado os problemas de saúde do poeta. Afirma o crítico: "... a Lapa literária, tecida entre todos, lembra Pasárgada, com sua consistência de desejo e sonho, feita do tecido da imaginação, mas correspondendo a realidades profundas da alma e a aspectos concretos da vida material. Na verdade, se percebe o quanto a própria Pasárgada bandeiriana tem a ver com a atmosfera da Lapa literária e boêmia dos anos 20, de modo que as aspirações singulares do poeta, barradas pela vida madrasta, se descobrem de repente realizáveis no mundo próximo e libertário da vida boêmia, no mais prosaico dia-a-dia do ambiente carioca." (Arrigucci Jr., Davi. Humildade, paixão e morte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 66). 

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