Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Um conto de Monteiro Lobato

Meu conto de Maupassant

Conversavam no trem dois sujeitos. Aproximei-me e ouvi:
― "Anda a vida cheia de contos de Maupassant; infelizmente há pouquíssimos Guys..."
― "Por que Maupassant e não Kipling, por exemplo?"
― "Porque a vida é amor e morte, e a arte de Maupassant é nove em dez um enquadramento engenhoso do amor e da morte. Mudam-se os cenários, variam os atores, mas a substância persiste – o amor, sob a única face impressionante, a que culmina numa posse violenta de fauno incendiado de luxúria, e a morte, o estertor da vida em transe, o quinto ato, o epílogo fisiológico. A morte e amor, meu caro, são os dois únicos momentos em que a jogralice da vida arranca a máscara e freme num delírio trágico."
― "?"
― "Não te rias. Não componho frases. Justifico-me. Na vida, só deixamos de ser uns palhaços inconscientes a mentirmos à natureza quando esta, reagindo, põe a nu o instinto hirsuto ou acena o ‘basta’ final que recolhe o mau ator ao pó. Só há grandeza, em suma, e ‘seriedade’, quando cessa de agir o pobre jogral que é o homem feito, guiado e dirigido por morais, religiões, códigos, modas e mais postiços de sua invenção – e entra em cena a natureza bruta."
― "A propósito de que tanta filosofia, com este calor de janeiro?..."
O comboio corria entre São José e Quiririm. Região arrozeira em plena faina do corte. Os campos em sega tinham o aspecto de cabelos louros tosados à escovinha. Pura paisagem europeia de trigais.
A espaços feriam nossos olhos quadros de Millet, em fuga lenta, se longe, ou rápida, se perto. Vultos femininos de cesta à cabeça, que paravam para ver passar o trem. Vultos de homens amontoando feixes de espigas para a malhação do dia seguinte. Carroções tirados a bois recolhendo o cereal ensacado. E como caía a tarde e a Mantiqueira já era uma pincelada opaca de índigo a barrar a imprimadura evanescente do azul, vimos em certo trecho o original do "Angelus"...
― "Já te digo a propósito de que vem tanta filosofia."
E, enfiando os olhos pela janela, calou-se. Houve uma pausa de minutos. Súbito, apontando um velho saguaraji avultado à margem da linha e logo sumido para trás, disse:
― "A propósito dessa árvore que passou. Foi ela comparsa no ‘meu conto de Maupassant’".
― "Conta lá, se é curto."
O primeiro sujeito não se ajeitou no banco, nem limpou o pigarro, como é de estilo. Sem transição, foi logo narrando.
― "Havia um italiano, morador destas bandas, que tinha vendola na estrada. Tipo mal-encarado e ruim. Bebia, jogava, por várias vezes andou às voltas com as autoridades. Certo dia – eu era delegado de polícia – uns piraquaras vieram dizer-me que em tal parte jazia o ‘corpo morto’ de uma velha, picado à foice.
Organizei a diligência e acompanhei-os. ‘É naquele saguaraji’, disseram ao aproximarem-se da árvore que passou. Espetáculo repelente! Ainda tenho na pele o arrepio de horror que me correu pelo corpo ao dar uma topada balofa num corpo mole. Era a cabeça da velha, semi-oculta sob folhas secas. Porque o malvado a decepara do tronco, lançando-a a alguns metros de distância.
Como por sistema eu desconfiasse do italiano, prendi-o. havia contra ele indícios fortes. Viram-no sair com a foice, a lenhar, na tarde do crime.
Entretanto, por falta de provas, foi restituído à liberdade, mau grado meu, pois cada vez mais me capacitava da sua culpabilidade. Eu pressentia naquele sórdido tipo – e negue-se valor ao pressentimento! – o miserável matador da pobre velha."
― "Que interesse tinha no crime?"
― "Nenhum. Era o que alegava. Era como argumentava a logicazinha trivial de toda a gente. Não obstante, eu o trazia de olho, certo de que era o homicida.
O patife, não demorou muito , traspassou o negócio e sumiu. Eu do meu lado deixei a polícia e do crime só me ficou, nítida, a sensação da topada mole na cabeça da velha.
Anos depois o caso reviveu. A polícia obteve indícios veementes contra o italiano, que andava por São Paulo num grau extremo de decadência moral, pensionista do xadrez por furtos e bebedices. Prenderam-no e remeteram-no para cá, onde o júri iria decidir da sua sorte."
― "Os teus pressentimentos..."
O sujeito sorriu com malícia e continuou.
― "Não resistiu, não reagiu, não protestou. Tomou o trem no Brás e veio de cabeça baixa, sem proferir palavra, até São José; daí por diante (quem o conta é um soldado de escolta), metia amiúde os olhos pela janela, como preocupado em ver qualquer coisa na paisagem, até que defrontou o saguaraji. Nesse ponto armou um pincho de gato e despejou-se pela janela fora. Apanharam-no morto, de crânio rachado, a escorrer-lhe a couve-flor dos miolos perto da árvore fatal."
― "O remorso!"
― "Está aqui o ‘meu conto de Maupassant’. Tive a impressão dele nas palavras do soldado da escolta: ‘veio de cabeça baixa até São José, daí por diante enfiou os olhos pela janela até enxergar a árvore e pinchou-se’. No progresso ingênuo da narrativa, li toda a tragédia íntima daquele cérebro, senti todo um drama psicológico que nunca será escrito..."
― "É curioso", comentou o outro, pensativamente.
Mas o primeiro sujeito acendeu o cigarro e concluiu sorridente, com pausada lentidão:
― "O curioso é que mais tarde um dos piraquaras denunciadores do crime, e filho da velha, preso por picar um companheiro a foiçadas, confessou-se também o assassino da velhinha, sua mãe..."
― "?"
― "Meu caro, aquele pobre Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde disse muita coisa, quando disse que a vida sabe melhor imitar a arte do que a arte imitar a vida."

LOBATO, Monteiro. Meu conto de Maupassant. Urupês. 37.ed.  São Paulo Brasiliense, 1994, p.83-86.

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