Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 23 de junho de 2010

o "eu" e seus desvãos

Quanto mais o tempo passa, mais me parece pertinente aquele dito da Clarice, num de seus contos mais herméticos, "O ovo e a galinha": "...'eu' é apenas uma das palavras que se desenham enquanto se atende ao telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada." Salvo engano, acho que entendi. Trata-se de um olhar oblíquo sobre a hipertrofia do EU que acomete as pessoas numa dada fase de suas vidas, especialmente quando estão sofrendo: "eu", "porque eu", "mas eu", "senão eu", "pois eu", "então eu"... e por aí vai - um "eu" que não dá trégua: "As galinhas prejudiciais ao ovo são aquelas que são um 'eu' sem trégua", diz a narradora no mesmo conto. Por isso gosto tanto das letras minúsculas, das coisas que podem ser ditas em minúsculas: parte da importância delas é retirada. Quando assisti ao monólogo "Simplesmente eu: Clarice Lispector", uma das partes que mais me chamou a atenção foi quando a atriz (na verdade parecia a própria Clarice, sem qualquer heresia) falava mais ou menos assim: como querem saber quem eu sou? como posso dizer quem sou eu? eu não sei quem eu sou... É pretensão querer saber quem a gente é. O "eu" é uma estranha armadilha em que inadvertidamente caímos, ao acreditarmos que há um centro organizador de nós mesmos. Nos achatamos num suposto "eu", e dele fazemos uma identidade. E aqui é bom não confundir literatura e vida - a mesma Clarice que advertia acerca dos limites do que se chama "eu" em seus textos era, de certa forma, um "eu" atormentado. Talvez por isso escrevesse com tanta propriedade sobre a questão.

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