Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Sérgio Buarque de Holanda e Tristão de Athayde: uma polêmica

Tristão de Athayde
Sérgio Buarque de Holanda

A obra do Sr. Tristão de Athayde exprime de maneira admirável um dos paradoxos mais sutis e mais consideráveis deste momento. Como pouco entre nós ele soube discernir o aspecto trágico do espírito que anima o melhor das produções da literatura moderna e essa negação da ordem civil, expressa ou dissimulada, em que concluem alguns dos contemporâneos mais ilustres. Sem ter escapado à sedução dos princípios de rebeldia e de languescimento em que se comprazem essas obras, não deixou de compreender e de acentuar o que há de singelo e até de artificioso, muitas vezes, na atitude de negação que nos propõem.
A vida, entretanto, afeiçoou se espírito aos ideais de estabilidade, encarecendo os valores reconhecidos e convergindo o seu pensamento para a exaltação desses valores e daqueles ideais. Todas as páginas destes Estudos, seu último livro, denunciam o firme empenho em nos oferecer um pensamento claro, definitivo, exigente. Sobre a vaidade e o artifício desse propósito dirão, melhor do que nós, algumas das suas próprias palavras. “O temível”, escreve, por exemplo, “o temível é seguir o caminho das seleções quando o impreciso nos atrai, é colocar os marcos da limitação quando sentimos o aceno das coisas que se espraiam indefinidamente.”
Essa passagem é a melhor chave que poderíamos obter para a compreensão do sentido deste livro, das suas excelências e também das suas fraquezas. Ela nos ensina principalmente a sorrir um pouco da imponência dessas “verdades” que nos apregoa o seu autor. E mostra, de mais, a fragilidade dos limites que pretende aceitar este homem sem malícia numa época em que todas as barreiras aparecem sobretudo como convites aos mais arrojados para que as transponham. Sua recusa de seguir o “aceno das coisas que se espraiam indefinidamente” não é tanto uma atitude negativa como uma prova de assentimento àqueles ideais de estabilidade a que se afeiçoou. A tragédia que exprime tal atitude resulta precisamente da inconsistência dessa recusa.
Seria, decerto, muito mais fácil decretar que os princípios de rebeldia são simples anomalias que não ousarão dissipar a integridade dos nossos orgulhosos sistemas filosóficos. A sociedade também possui desses elementos de rebelião e de injustiça, mas ela os relega para além de seus limites. Eles não poderiam evidentemente cooperar na constituição de um organismo político estável. Mas resulta dessa impossibilidade que a cidade moderna não comporta todas as formas de vida social, ela não comporta mesmo as mais importantes.
A consideração desse singular paradoxo, que subsiste na vida política, ilumina certas particularidades do problema moral, mais particularmente do problema cultural e mostra-nos a sua universalidade. As antinomias que hoje se apresentam ao homem desafiarão amanhã, no terreno social, o homem de ação. E mesmo nesse terreno, quem nos diz que o problema ainda não existe?
Isso nos explica muito sobre a hesitação do Sr. Tristão de Athayde, as oposições que ele se empenha em vencer, a sua fraqueza e também ― por que não? ― a sua vaidade. Ele compreendeu bem claramente que a solução final de todas essas antinomias só nascerá de nossa fidelidade a um plano de existência superior e transcendental. Em outras palavras: que só poderá ser uma solução religiosa. A todo instante encontramos nas páginas de seu livro desses acenos indecisos a uma justificação transcendente, dessas exigências de absoluto, desses apelos, enfim, ao “elemento espiritual”, à “mística criadora”, que virá fundir e elevar os aspectos contraditórios de nossa existência. Esse recurso a uma justificação espiritual não é inédito, dele compartilha toda uma classe de pensadores novos com os quais o autor destes Estudos apresenta importantes afinidades. É um processo que não deixa de evocar a fórmula que presidiu à elaboração das grandes Summas medievais. Apenas com esta diferença que nelas o que existia era uma fé em busca de suas justificações, de suas razões ― fides quaerens intellectus ― quando, no caso presente, será antes uma inteligência que quer se apoiar numa base emocional. O Sr. Tristão de Athayde limita-se a inverter o problema que se ofereceu ao doutor Angélico.
Não é admirável, diante disso, nem espantoso, que se incline com insistência para o ponto de vista do catolicismo. O que seria a nós pelo menos interessante é, ao contrário, se não tivesse percebido que a concepção católica do mundo coincide perfeitamente com sua exigência de uma solução dos elementos anárquicos do cristianismo nos princípios que criam e que alimentam a ordem civil, a moral urbana, de uma pacificação impossível do espiritual com o temporal. Nenhuma outra doutrina conviria tão plenamente a um homem que aspira a organizar a sua desordem neste mundo sem recusar subvenções do outro mundo. E que, mesmo independente delas, aí não vierem, desejaria “restabelecer um equilíbrio da vida, disciplinar os demônios da liberdade”.
Agora já se desenha com maior nitidez o problema que o Sr. Tristão de Athayde se propôs resolver ou dirigir para uma solução. Ele pensa que temos ido muito longe no que chama o caminho das diluições. “Chegamos inconscientemente”, diz um trecho admirável de seu Schema, “àquele mesmo estado de virgindade intelectual em que Descartes voluntariamente se colocou.” Realmente nada há tão expressivo da situação a que nos conduziu a desestima sempre mais acentuada em que de há três séculos para hoje vem caindo a dignidade dos valores tradicionais. A propósito, eu poderia citar aqui a explicação que nos dá o escritor francês Mauriac da atual decadência do romance, quando mostra que, para os moços de hoje, em consequência desse descrédito em que caíram todos os valores, já não existem mais conflitos.
Nietzsche chegou a propor o niilismo de seu tempo como prefácio a uma coisa a que chamava de cultura trágica. Seria uma cultura onde a sabedoria, insensível às diversões capciosas da ciência, abraçasse com um olhar imutável todo o quadro do universo e, nessa contemplação, procurasse ressentir o sofrimento eterno com compaixão e com amor, fazer seu o sofrimento eterno. Mas Nietzsche lutava com fervor pelo abandono desses valores e queria mais a recusa das diversões capciosas da ciência. De tudo isso enfim que o Sr. Tristão de Athayde deseja precisamente resguardar, integrar e acentuar em seu projeto de solução, quando nos propõe que se substituam princípios permanentes de construção ao niilismo ou elementarismo de nossos dias. Princípios de construção que só poderão ser justamente esses valores tradicionais que nossa época já não digere.
Estamos, pois, diante desse fenômeno bem característico deste tempo: um tradicionalismo que intimamente descrê das tradições, um dogmatismo que, no fundo, é um ceticismo e, por mais absurdo que possa parecer, um racionalismo que quer ser ao mesmo tempo um misticismo. Ele não compreende, ou não quer compreender, ou finge não compreender, que existe uma censura, uma disjunção fundamental entre o Espírito e a Terra ou, para de suas próprias expressões, entre o “plano das verticalidades” e o “plano das horizontalidades”. Toda a conciliação que se propuser entre esses dois planos não será outra coisa que um hibridismo insólito, uma aglutinação superficial, jamais uma combinação íntima e suscetível de permanência. Não se pode mais hoje, como no tempo de Santo Agostinho, ser ao mesmo tempo e simultaneamente um cidadão do céu e da terra. E o pensamento que realmente quiser importar para a nossa época há de se afirmar sem nenhum receio pelos seus reflexos sociais, por mais detestáveis que estes pareçam. Há de ser essencialmente um pensamento apolítico.
É o que não ousa desejar o Sr. Tristão de Athayde com os seus princípios de construção. E, assim, crente, descrente, dogmático e ao mesmo tempo cético, sem nenhum ponto de apoio cuja solidez ou cujo prestígio lhe mereçam crédito, prefere ao heroísmo dos que se importam com a verdade sem nenhuma preocupação pelas conveniências, este outro heroísmo bem menos considerável de exaltar o ponto de partida a que já é impossível tornar impunemente. E é dessa posição teórica, insustentável e antinatural que o Sr. Tristão de Athayde retirou os tijolos para construir um dogmatismo necessariamente ilusório. Esse instrumento ilegítimo é que utiliza para combater os “homens de antes da guerra”, os “dinamistas” e os partidários de um “primitivismo” entre os quais eu próprio, a meu pesar, me vejo colocado...
Esperei poder falar das excelências deste livro do Sr. Tristão de Athayde; limitei-me a dizer, desajeitadamente, que não poderia considerar de modo diverso uma obra e uma personalidade que eu admiro e que desejaria fossem realmente importantes, fossem imprescindíveis para nossa geração e nosso tempo.

Jornal do Brasil, RJ, 29.09.1928.

Raízes de Sérgio Buarque de Holanda. Organização e introdução Francisco de Assis Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1989, p. 111-115.

P.S. Esse texto teve como “resposta” o ato público de conversão ao catolicismo de Alceu Amoroso Lima, “Adeus à disponibilidade”, cujo subtítulo foi “Carta a Sérgio Buarque de Holanda” (escrita ao que consta em 1929). Segue um pequeno trecho: “Não vou fazer a você nenhuma dessas narrativas íntimas, que nos primeiros anos da adolescência tanto lisonjeiam nossas vaidades, quando julgamos que os homens realmente se interessam por aquilo que para nós é um problema de vida ou morte. Quero apenas dizer-lhe que não ignoro o que há de irresistível na engrenagem sutil das demissões de nosso próprio eu. Da mesma forma que não ignoro quanto há de delicioso e de confortável na eterna recusa de compromissos. E quanto a beleza foge aos gestos precisos. E quanto a verdade parece ganhar com a ilimitação. E quanto a vida é mais mansa ao sabor dos ventos. E quanto... Mas chega o momento em que sentimos, como você bem sabe, o que excede de nós e não apenas a necessidade do que excede de nós. Vemos então, com outros olhos, os anos de luta para mantermos a disponibilidade gidiana, para guardarmos, não apenas a serenidade mas ao menos a irresponsabilidade do diletantismo ou da incessante evanescência de todos os contrários pelos semelhantes, de todos os semelhantes pelos contrários...” (ATHAYDE, Tristão de. No limiar dos cruzamentos. Revista do Brasil, Rio de Janeiro, Ano 3, n. 6, p. 120, 1987. Número especial dedicado a Sérgio Buarque de Holanda.)

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