Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 20 de agosto de 2011

memória

A memória é um poço do qual emergem nomes, pessoas, cenas antigas. Não temos uma memória: somos o que a memória vai deixando brotar à superfície em cada instante em que a vida se divide. O percurso precursor alavancando intuições que levam ao momento seguinte: quanta paciência neste ruminar da vida! A memória não seria a mesma se, num hipotético instante remoto, outro tivesse sido o rumo. Como sabê-lo?

Este texto é uma homenagem a um amigo de escola que tive na antiga 5ª série, Sandro, de quem recordo, além do belo nome, apenas o sorriso largo de criança, uma alegria irradiada. Por algum obscuro motivo éramos amigos, havia uma constância naquele companheirismo de infância. Eu tinha por volta de 11 anos, e estudávamos numa escola pública. Havia também um namoradinho, mas a lembrança deste só vem por contraste e acidente ― vi-o muito tempo depois, e já então pertencia àquela vasta galeria de pessoas que crescem e se tornam quase irreconhecíveis. Já o Sandro eu nunca mais vi, mas alguns traços dele, o bastante para compor uma persona, ficaram cravados para sempre na minha memória, algo que só pude saber há bem pouco tempo.

Toda vez que me interrogo sobre aquele ser, de que me recordo apenas dois ou três traços, o que terá lhe acontecido, eu tenho a estranha sensação de que eu vivia num mundo de sonho, do qual não imaginava que fosse um dia despertar. Quando interrogo a minha memória, percebo que meu próprio estado de origem, o Espírito Santo, padece de certo apagamento na geografia do país, e que a década em que me iniciei na escola e na vida, os anos 70, também é página mal resolvida. História e geografia: no delineamento de uma vida, pisa-se por vezes em terrenos irregulares, enquanto há um concerto maior que escapa a quem está vivendo.

A memória que tenho de tudo é singularíssima. As escolhas, as intuições... O que vou dizer pode contrariar aquele lugar mais do que comum acerca dos sentimentos, mas eu não rezo pela cartilha do óbvio e seus cumes de insignificância: eu prestei mais atenção ao amigo que ao suposto namorado. Por que era então uma criança? Não sei se é só isso. O fato é que, depois de muito tempo, no ano passado, quando num lance inesperado eu fui lecionar para o 6º ano, eu me lembrei subitamente daquele menino que era então meu amigo, de seu nome e daquela alegria rara, incomum. Sei que nenhuma internet, facebook ou afim vai trazer de volta esse tempo, aquele amigo. E, entre todas as minhas angústias, perplexidades e indagações, eu me pergunto, não sem um travo de tristeza, se a vida preservou ou levou de enxurrada a alegria do meu efêmero amigo quando ele se fez Homem.

Prefiro não me perguntar outras coisas, e acreditar que ele continua vivo por aí, respirando aquela intensa vivacidade que captei enquanto convivemos. No ano seguinte meus pais me mudaram de escola. De mudança em mudança, instalei-me por fim numa geografia oscilante: o pronome eu é apenas um modo confortável e econômico de me poupar explicações sem sentido. Estarei revendo o Sandro em algum dos meus alunos do 6º ano? De todo modo, eu sempre tive pouco, e desse pouco fiz a minha história singular.

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