Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

palco

Os sonhos são sempre uma mistura de coisas para as quais faltam adjetivos. Então estariam eles tocando nos substantivos, na própria coisa, colocando-a em sua nudez de essência, ou quem sabe mesmo de aparência? A nudez aparente das coisas. A aparência nua das.
Em sua aparência nua, as coisas desfilam misturadas nos sonhos, e alguns substantivos saltam do enredo confuso: por exemplo, plateia, porque havia um palco e eu estava nele. Desempenhando um papel ordinário, talvez. Mas porque distingui uma criatura igualmente ordinária na plateia? Por que aquela criatura na plateia, quem sabe até numa posição passiva diante de mim?
Parece impossível escapar ao adjetivo, quer dizer, ao julgamento. Mesmo a oposição palco x plateia encerra um juízo de valor. Quem julga, normalmente, é quem está na plateia, agora me ocorre. Mas o olhar era meu, já que era eu quem sonhava. Ou era sonhada e aquelas coisas e pessoas todas já chegavam traduzidas até mim? Pois havia mais gente comigo, no palco. Enquanto hierarquicamente o palco parece estar acima da plateia, essa hierarquia bem pode ser uma conclusão (ou confusão) minha, afinal o ponto de vista era o do palco, portanto meu. O palco de cada vida? Cada vida se supondo palco?
Eu vi passividade no ser que distingui na plateia. Mais do que passividade: certa nulidade. Um ser destituído de palco próprio? Existirá isso? Ou esta foi a forma retórica que encontrei para anular aquele ser? Sonhos são já uma tradução. Escrever sobre eles pressupõe uma outra camada de pátina, desviando-se daquela nudez que as imagens cruas dos sonhos permitem. Ou aquele ser era a ironia da plateia, o lado coadjuvante e barato do “grande” palco que projetei, desde cedo, para minha vida? Eu fiz isso, imaginei uma grande performance vida a fora? Pior para mim.
Este sonho está me perseguindo há dois dias, e a única forma de me livrar dele foi falando, quer dizer, escrevendo. Porque nas palavras encontro outra espécie de palco, cuja plateia é-me mais enigmática, e portanto mais interessante.

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