Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 4 de dezembro de 2010

"Na noite escura da alma" - acerca de James Joyce


Há um texto sobre James Joyce, escrito por Luís Gúsman, focalizando Finnegans Wake, de que transcrevo alguns trechos, nodais em relação à obra do escritor irlandês: "Na noite mais profunda, um homem sonha com um livro que nunca vai a escrever porque como Dante, sabe que se existe inferno, existe um só. Sonha com Dublin, a sétima cidade da cristandade, sonha com a noite desta cidade. (...) Na noite escura da alma alguém sonha com o redespertar (...) Na noite mais escura confia em que a linguagem o devolva a sua morada para explicar com a luz do dia por que a história é um pesadelo do qual não podemos despertar. Na noite mais escura este homem descobre que todas as línguas são uma só, busca a língua do redespertar. (...) No redespertar este homem confia em que a linguagem o leve de volta à morada, e une a linguagem a uma geografia. Na noite mais profunda o homem joga com as palavras e 'nigth/mare' se converteu em 'nigth/maze'. O pesadelo se converteu em labirinto. Mas no tratamento da noite o surpreende uma extranha dor no peito. (...) Esta pedra leve da cristandade se converteu em um peso. (...) Na noite mais escura redecora a carta de seu irmão Stanislaus: 'Fizeste o dia mais longo da literatura e agora estás conjurando a noite mais profunda.' Ele sabe que o mundo da noite não pode ser representado pela linguagem do dia; é nessa certeza que se baseia sua contra-argumentação. Todos crêem, até ele mesmo, que se trata de representar a linguagem do sonho. (...) A língua se retorce, explode, mas é necessário voltar à linguagem. Escreve em outra língua: 'Je suis au bout de l'anglais'. Por isso é que na noite mais profunda afirma a frase mais abismal: ‘I have put the language to sleep'. Colocar para dormir a língua, ninguém foi tão longe. (...) 'I'm at the end of English', estou no limite do inglês. Então suspende a língua, coloca-a para dormir. (...) Todos estão intrigados para ver até onde está disposto a chegar com a linguagem. Nesta travessia, vai perdendo amigos. Ele o disse: 'Coloquei para dormir a língua inglesa'. E fez para ver de que maneira sonha uma língua. Mas o espinho na carne não deixa de perturbá-lo, se trata de redespertar, trata-se de encontrar em vão a língua do pesadelo. À noite mais profunda segue o despertar. Toma café da manhã Bloomsday em um tapete que representa o Liffey correndo através de Dublin para desembocar no mar da Irlanda. A figura no tapete também leva seu próprio escudo de armas. É que pela manhã é preciso voltar à casa, transformar o Finnegans em um livro deste mundo." (Jornal do Brasil, Caderno de Idéias, 06/01/1991, p.9.)
Fonte da imagem: Fractarte.

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