Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 5 de março de 2010

O surgimento do Cubismo em Picasso, narrado por Nicolau Sevcenko

O episódio narra o contexto de criação do quadro Les demoiselles d' Avignon (1907), que instaura o Cubismo. Segue o relato de Sevcenko: 

"Picasso viera de Barcelona entusiasmado com o realismo de denúncia da miséria e desagregação social, que tinha ali um dos seus principais núcleos de difusão. Essa fora a linguagem de seus primeiros anos em Paris, durante as chamadas fases azul e rosa, voltada para a representação dos párias dos arrebaldes a primeira e as personagens das artes populares mambembes a segunda. Foram a boemia parisiense e Jarry [idealizador do balé multiartístico "Parade"] que fundaram a revolução Picasso. // Essa revolução ocorreu em 1907 e se chamou Les demoiselles d' Avignon. Picasso a criou em sua casa-estúdio, chamada Bateau-Lavoir por sua semelhança com as embarcações-residências de madeira das lavadeiras do Sena. O Bateau-Lavoir era um foco da elite boêmia e anarquista, sendo alvo de vigilância e batidas policiais, com a grossa maioria de seus frequentadores, inclusive Picasso, fichados na polícia. Depois de um amplo período de ensaios e experiências, Picasso partiu para criar as "demoiselles", com o objetivo propício de compor uma obra de impacto. (...) As fontes de que Picasso hauriu para compor o quadro foram várias e díspares e a todas ele proviu uma reformulação e um contexto originais. A amplitude de alcance do seu empenho catalítico ia desde um acadêmico festejado, como Jean-Auguste Dominique Ingres, de quem ele absorveu a modelagem anticonvencional dos nus, até as ousadias cromáticas, o chapamento bidimensional das formas assinaladas pelo contorno desenhado e a decomposição do espaço em campos de cores justapostas sem profundidade ou perspectiva dos fauves, sobretudo Matisse. Cézanne, homenageado após sua morte com uma grande exposição retrospectiva em 1906, forneceu principalmente a geometrização elementar das formas, a volumetria do espaço, o adensamento, homogenia e autonomia plástica da composição. A pantomima, o teatro popular, mas acima de tudo o cinema cômico-experimental de Méliès, a coqueluche da população suburbana de Montmartre, sugeriram a mobilidade do foco, a múltipla perspectiva, o desdobramento das imagens, a simultaneidade cronológica e a livre intercambialidade de todos os elementos da composição entre si e com elementos externos. Foi o que propiciou a abertura para a introdução desses dois elementos heteróclitos que implodiriam o gênero pintura tal como se conhecia até então: a arte ibérica arcaica e arte negra africana." (SEVCENKO, Nicolau. Orfeu extático na metrópole. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 194-195.)

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