Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Le Couperet (Costa-Gavras, 2005)


O Corte (segue um bom comentário aqui) constitui não só uma metáfora extrema do capitalismo (para sobreviver, eliminamos nossos concorrentes), como um forma de lidar com isso pela via do humor, já que não se escapa aos imperativos da sobrevivência. A questão em O Corte, mais que o desemprego, é a ameaça constante que paira sobre os indivíduos, empregados ou não. Levado a uma situação extrema, o protagonista recorre a métodos extremos, não sem passar por abalos psíquicos e emocionais. Remetendo a um serial killer cujos fins seriam nobres, o filme mantém um ritmo nervoso que é o próprio ritmo frio e alucinado com que o protagonista arquiteta e executa seu plano de recolocação no mercado de trabalho. Nesse sentido, o cotejo com o recente e em formato Oscar Up In The Air ― divulgado no Brasil como comédia romântica, já pelo título, numa estratégia tipicamente comercial (trailer aqui), com o belo e talentoso George Clooney no papel de protagonista que faz o trabalho sujo pelas empresas, com as mãos sempre limpas, de comunicar às pessoas a demissão delas  não deixa de provocar um travo de ironia, haja vista que neste caso a tentativa de humor restringe-se, no conjunto, ao drama pessoal do protagonista, herói às avessas de um mundo ingrato, triste e melancólico, e que fala de si próprio aludindo, na sua dificuldade de vínculos com o mundo, ao gnomo viajante do filme francês (uma das sequências mais curiosas de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain), mas na verdade seu reverso, pois não traz nenhuma boa-nova. Só mesmo no mundo fabuloso de Amélie Poulain gnomos viajam, fazendo acreditar que sonhos ainda são possíveis no pesadelo em que o capitalismo converteu a vida das pessoas, com poucas possibilidades de fuga ou evasão.

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