Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 18 de julho de 2010

Julio Cortázar

Trabalhos de escritório

Minha fiel secretária é das que tomam sua função ao pé da letra, e já se sabe que isso significa passar para o outro lado, invadir territórios, enfiar os cinco dedos no copo de leite para tirar um pobre cabelinho.
Minha fiel secretária se ocupa ou pretenderia ocupar-se de tudo em meu escritório. Passamos o dia travando uma cordial batalha de jurisdições, um intercâmbio sorridente de minas e contraminas, de saídas e retiradas, de prisões e resgates. Mas ela tem tempo para tudo, não só procura apropriar-se do escritório como cumpre escrupulosamente suas funções. Por exemplo, as palavras, não há dia que não as encere, as escove, as coloque na prateleira exata, as prepare e as enfeite para suas obrigações cotidianas. Se me vem à boca um adjetivo prescindível porque todos eles nascem fora da órbita de minha secretária ― e de certa maneira de mim mesmo ―, já está ela de lápis na mão agarrando-o e o matando sem lhe dar tempo de colocar-se ao restante da frase e sobreviver por descuido ou por hábito. Se eu deixasse, se neste mesmo instante eu deixasse, ela jogaria estas folhas na cesta, enfurecida. Está tão decidida a que eu viva uma vida condenada, que qualquer movimento imprevisto a leva a erguer-se, toda orelhas, toda rabo em pé, tremendo como um arame ao vento. Tenho que disfarçar, e a pretexto de que estou redigindo um relatório, encher algumas folhinhas de papel cor-de-rosa ou verde com as palavras que eu gosto, com as suas brincadeiras, os seus saltos e as suas brigas raivosas. Enquanto isso, minha fiel secretária arruma o escritório, aparentemente distraída mas pronta para dar o bote. Na metade de um verso que nascia tão contente, pobrezinho, eu a ouço começar seu horrível guincho de censura, e então meu lápis volta a galope às palavras proibidas, risca-as correndo, ordena a desordem, fixa, limpa, dá esplendor ― e o que sobra é provavelmente muito bom, mas essa tristeza, esse gosto de traição na língua, essa cara de chefe com sua secretária.

CORTÁZAR, Julio. Histórias de cronópios e de famas. Trad. Gloria Rodríguez. 12. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p. 47-48.

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