Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 29 de julho de 2012

ATIRE SE PUDER - NELSON LEIRNER

A  coleção de Gilberto Chateubriand exposta no MAM-Rio é bastante diversificada, indo de nomes representativos do  modernismo ao contemporâneo. Neste último, uma instalação, situada num local de passagem, obriga parada: “Atire se Puder”, de Nelson Leirner (2001). A disposição dos revólveres lembra, estranhamente,  as prateleiras de um supermercado, com os produtos apontados ameaçando o consumidor (dentro de um supermercado, todo mundo torna-se um pode ser um dos recados). Mas a agressividade da instalação ultrapassa a metáfora, qualquer que seja ela, pois as armas (de plástico) estão apontadas para quem vê a instalação de frente (a não ser que se evite fazê-lo, o que, pela própria agressividade de tudo, é mais do que desejável). Ao perceber, lateralmente,  do que se trata, ou seja, ao perceber as armas apontadas, há um movimento irrefletido de recuo, de tentar passar sem se sentir mirado por aquilo, pelas armas (apontadas). O verbo no imperativo (“atire”)  vem seguido de dois termos semanticamente dubitativos: a conjunção “se” e o verbo “poder” conjugado no modo da possibilidade, o subjuntivo (“puder”). Não é “atire se quiser”, o que daria a sensação de poder: é “atire se puder”, ou seja, se conseguir, se alcançar fazê-lo, se estiver ao (seu) alcance... colocando, desse modo, o espectador na posição de mirado, de alvo, já que o enunciado-título lança o desafio de ter cacife para a concretização do dito, da transformação da potência em ato ― mas quem quer fazê-lo? Atirar em quem? Por quê? Qual seria o alvo daquelas armas, assaz bélicas, já que se pressupõe o rechaço da violência em qualquer tentativa mínima de humanização? Violência que insiste em se presentificar, em incomodar, em voltar sempre, em deixar sua marca indelével nas vítimas, nas suas mais diferentes formas e manifestações. É como se a instalação pudesse dizer: não se pode evitar a violência, resta saber de qual lado se consegue estar, o que certamente traz o incômodo de perceber a onipresença de alguma forma de poder em qualquer lugar discursivo e social que  se ocupe. A arte, então, surge como uma suspensão desses lugares-discursos, porque nela pode-se encontrar alguma remissão, uma tentativa de saída, de esvaziar a belicosidade do poder. A potência (de que tipo, aliás?) ― “ATIRE” ― apresenta-se circunscrita ao campo do poder, um poder agressivo, armado, letal. Então as coisas podem, também, voltar para a prateleira do supermercado e ganhar o desconforto de uma metáfora: o capitalismo. 

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