Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 29 de julho de 2012

clarice lispector, macacos, rio de janeiro

Vou ao dicionário saber mais sobre os saguis (agora sem trema) antes de começar, para não correr o risco de falar do primata errado. Descubro-os, entre outras coisas, pertencentes à família dos calitriquídeos: pequenos primatas, florestais, da família dos calitriquídeos, com cerca de 20 espécies, encontradas nas Américas Central e do Sul; com até 37 cm de comprimento do corpo, cauda longa e não preênsil, pelagem macia e densa, de colorido variável, unhas em forma de garra e polegar não oponível; vivem em pequenos grupos e se alimentam principalmente de insetos e frutas. Então, são mesmo saguis os pequenos primatas que ouço e vejo (mais ouço que vejo) todo dia nas imediações de onde moro. Pequenos, delicados, reúnem-se nas árvores do outro lado da rua. Já me acostumei a ouvi-los, principalmente pela manhã. A memória imediata despertada foi o sítio de minha irmã em Domingos Martins. É como se pudesse ter um torrão de lá aqui, no andar alto de um prédio localizado em via bastante movimentada. E foi talvez pela súbita familiaridade com os saguis, com sua companhia benfazeja, que a notícia da morte por envenenamento de seis macacos no bairro Jardim Botânico, zona sul do Rio de Janeiro, ancorou mais que outras notícias, afinal sequer moro no bairro. Mas moro na mesma cidade, e se já havia lido outras vezes a crônica “Macacos” de Clarice Lispector, agora a cidade enveredou-se ao texto: “Meus sentimentos desviavam o olhar. A inconsciência feliz e imunda do macacão-pequeno tornava-me responsável pelo seu destino, já que ele próprio não aceitava culpas. Uma amiga entendeu de que amargura era feita a minha aceitação, de que crimes se alimentava meu ar sonhador, e rudemente me salvou: meninos do morro apareceram numa zoada feliz, levaram o homem que ria, e no desvitalizado Ano Novo eu pelo menos ganhei uma casa sem macaco.” (Os melhores contos de Clarice Lispector. 3.ed. São Paulo: Global, 2001, p.99).

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