Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

millôr fernandes: fábulas fabulosas III

OS GASTOS DISPENSÁVEIS

Estava o homem dentro da mata, cortando a sua arvorezinha, quando ouviu o grito de socorro: “Au secours! Souvez-moi!” Imediatamente, com aquela humanidade de que todos somos feitos, pôs-se a correr. Evidentemente, com aquela humanidade de que todos somos feitos, na direção contrária ao grito do socorro. Mas, por isso ou por aquilo, foi dar exatamente no local de onde partiam os gritos de socorro. Numa pequena clareira se lhe deparou então um quadro horrível: um homem, ou melhor, um camponês, lutando braço a braço com uma fera. Sentada numa pedra, com um rifle na mão, uma mulher, aparentemente mulher do camponês, contemplava a luta, pitando o seu pito. Sem saber como agir o homem avançou para os dois que lutavam, logo recuou, logo tentou avançar de novo, recuou de novo e, sem ter o que fazer, atarantado, voltou-se para a mulher e berrou: “Que faz você aí, mulher dos infernos? Por que fica assim, sem fazer nada? Por que não atira? Vamos, atire!” E a mulher, pitando seu pito, respondeu então: “Calma. Calma, homem! Pode ser que a fera me economize uma bala.”

MORAL: Os nossos pontos de vista não são necessariamente os alheios.

 Millôr Fernandes. Fábulas fabulosas. 15.ed. Rio de Janeiro: Nórdica, 1999, p.41-42.

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