Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 6 de novembro de 2010

um sertão chamado Brasil

A inédita viagem feita recentemente ao interior do Brasil ― ao estado de Goiás ― provocou certo bulício em algumas de minhas certezas, conquistadas com persistência e paciência. Acostumada a certa itinerância, já conhecia os estados do Paraná, São Paulo, Minas Gerais (onde residi, em dois períodos intermitentes, por significativos oito anos) e Bahia, além do estado do Espírito Santo, claro, onde nasci e residi até a juventude. Há uma obra versando sobre a dualidade litoral x interior que tem um título curioso  Um sertão chamado Brasil, de Nísia Trindade Lima. Cito pela riqueza imagética do título. E aí me recordo, num dos eventos que assisti dedicados a Guimarães Rosa, de uma fala do nada ortodoxo Flávio Aguiar, professor de literatura brasileira da Universidade de São Paulo, quando contou que naquela prestigiosa universidade os alunos do curso de Letras (literatura brasileira) necessariamente tinham (não sei se ainda têm) que ler Grande sertão: veredas. De forma que havia a brincadeira de sugerir fazer uma camiseta, após passar pela disciplina dele, com os dizeres, nas costas (ou no verso): "Eu li Grande sertão". Uma frase simples, que me vem agora. Não saberia dizer, sem titubear, que li Grande sertão. Obras assim não se dão fácil ao leitor. Peguei para reler no início deste ano, mas como estava muito envolvida com a tese acabei declinando. O fato é que esse interior do interior reavivou em mim Guimarães Rosa, e então eu retorno para a questão do sertão, destacando uma fala da obra citada:

"De espaço geográfico a lugar simbólico de intenso apelo emocional, abordei aqui ― diz a autora ― o sertão de ângulos distintos, mas que indicam quase sempre uma tensão permanente diante dos contrastes, das desigualdades e dos problemas que acompanham o debate sobre a modernidade na sociedade brasileira. Ao longo do trabalho procurei demonstrar que a matriz dualista é parte constitutiva da imaginação social sobre o país, revelando algo mais do que a oposição entre o Brasil moderno e o atrasado [...].” A autora refere-se “à ambivalência dos intelectuais no que toca ao tema da identidade, seja a identidade nacional, seja a sua própria identidade [...]. Daí, que a condição de estrangeiro seja lembrada nas referências à própria intelectualidade, como a esses diferentes 'outros' ― sertanejos, caipiras, pobres, classes subalternas ― que se toma por objeto de pesquisa. Vendo-os como estrangeiros em seu próprio país, é também como estrangeiro que o intelectual se coloca diante da sociedade." [LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil. Intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan; Iuperj, 1999, p.207].

Se as representações dos intelectuais em relação a esse “outro” tentam pelo menos ser benevolentes, na medida em que, pelo menos mais modernamente, não se travestem de preconceitos, o mesmo não se pode dizer sobre as representações que fazem de si, entre si, os brasileiros. Carlos Drummond de Andrade, num poema famoso, “Hino Nacional”, decantando todo o azedume da época, inclusive o seu, perguntava/afirmava, ao final do poema: “Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?” Traduzia, com precisa incerteza, a perplexidade primeiro modernista que quis redescobrir o Brasil. A ironia dos versos finais é demolidora acerca de qualquer ilusão de identidade nacional. Não é possível esquecer que Drummond é um dos intelectuais que Nísia Trindade tem em mira, por ver-se estrangeiro na própria terra. Que terra? O Brasil, ora, essa que nos coube habitar.

Hino Nacional

Precisamos descobrir o Brasil!
Escondido atrás das florestas,
com a água dos rios no meio,
o Brasil está dormindo, coitado.
Precisamos colonizar o Brasil.

O que faremos importando francesas
muito louras, de pele macia,
alemãs gordas, russas nostálgicas para
garçonnettes
 dos restaurantes noturnos.
E virão sírias fidelíssimas.
Não convém desprezar as japonesas.

Precisamos educar o Brasil.
Compraremos professores e livros,
assimilaremos finas culturas,
abriremos
 dancings e subvencionaremos as elites.

Cada brasileiro terá sua casa
com fogão e aquecedor elétricos, piscina,
salão para conferências científicas.
E cuidaremos do Estado Técnico.

Precisamos louvar o Brasil.
Não é só um país sem igual.
Nossas revoluções são bem maiores
do que quaisquer outras; nossos erros também.
E nossas virtudes? A terra das sublimes paixões...
os Amazonas inenarráveis... os incríveis João-Pessoas...

Precisamos adorar o Brasil.
Se bem que seja difícil caber tanto oceano e tanta solidão
no pobre coração já cheio de compromissos...
se bem que seja difícil compreender o que querem esses homens,
por que motivo eles se ajuntaram e qual a razão de seus sofrimentos.

Precisamos, precisamos esquecer o Brasil!
Tão majestoso, tão sem limites, tão despropositado,
ele quer repousar de nossos terríveis carinhos.
O Brasil não nos quer! Está farto de nós!
Nosso Brasil é no outro mundo. Este não é o Brasil.
Nenhum Brasil existe. E acaso existirão os brasileiros?

ANDRADE, Carlos Drummond. Reunião. Rio de Janeiro: José Olympio, 1971, p.36-37.

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