Acabo de retornar de uma viagem à Chapada dos Veadeiros, estado de Goiás. O objetivo era fazer um passeio ecológico ― cerrado, quedas d'água magníficas, muita natureza. No segundo dia o corpo cedeu às investidas da dor e do cansaço, e a coisa periclitou. O fato é que quem está mergulhado na literatura por vezes vê as coisas por uma via fortemente imagética. Lembro-me de um professor, oriundo da região do São Francisco, que dizia ter a região onde ele nasceu sentida mais pelas páginas do Grande sertão do que pela memória pessoal. De minha parte, eu estava também atrás de Guimarães Rosa. Quem supõe, procura. Quem procura, encontra, mais do que está buscando. Tudo é muito confuso. Encontrei não uma paisagem, mas um personagem vivo, vivíssimo aliás, saído das páginas de Guimarães Rosa. Na confusão geral de passar mal, e de me assustar deveras com isso, no meio da noite, enquanto todos dormiam, fui sendo atendida por pessoas absolutamente estranhas. Havia um médico na pousada, marido da proprietária, na confusão de tudo as pessoas iam brotando, aparecendo como que por encanto. E esta é uma palavra muito a calhar. Que homem encantador. Eu chorava, de medo, de susto, de mal estar, de tudo. Me sentaram numa cadeira, e enquanto água, chá e remédio eram providenciados, esse médico ia falando, falando, falando, falando, coisas as mais bizarras, mas cheias de uma sabedoria que eu apreendia, mas não conseguiria reproduzir. E de repente, no meio do mal estar e da confusão e do medo, eu fui me dando conta, muito de mansinho, por aquela fala aloprada, que eu estava diante de um personagem saído diretamente das páginas de Grande sertão, e ali eu entendi muita coisa. Que criatura, que ser era aquele? Creio que vivi algo único, que não acontecerá outra vez. Claro que Guimarães Rosa não ia tirar aquela confusão toda que reina em Grande sertão do nada ― agora eu sei disso, de uma maneira muito capciosa, sutil e delicada. Há uma sabedoria estranha nesses confins de Brasil, nesses seres interioranos. É uma pena que minha memória não tenha guardado quase nada daquela fala, das maluquices, das idas e vindas, dos torneios, das brincadeiras misturadas a ditos sérios. Uma vez medicada, fui dormir. No outro dia, mais mal estar, e lá estava o tal personagem, prontificando-se a ajudar novamente, um humor fora do comum. Na volta do posto médico, eu perguntei se ele havia lido Grande sertão, e ele falou que tinha apenas folheado. Então eu comuniquei minha impressão da noite anterior. E esse ser me disse uma coisa fantástica: então você ouviu os recados do sertão. Inacreditável! Só não sei se entendi...
Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.
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