Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Julio Cortázar

História verídica

Um senhor deixa cair ao chão os óculos, que fazem um barulho terrível ao bater nos ladrilhos. O senhor se abaixa aflitíssimo porque as lentes dos óculos custam muito caro, mas descobre assombrado que por milagre elas não se quebraram.
Agora esse senhor sente-se profundamente grato, e compreende que o acontecimento vale por uma advertência amistosa, de maneira que se dirige a uma ótica e compra logo um estojo de couro acolchoado, com proteção dupla, como precaução. Uma hora depois deixa cair o estojo e ao abaixar-se sem maior preocupação verifica que os óculos viraram farelo. Esse senhor leva tempo para compreender que os desígnios da Providência são insondáveis e que na realidade o milagre aconteceu agora.

CORTÁZAR, Julio. Histórias de cronópios e de famas. Trad. Glória Rodriguez. 12.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.72. 

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