Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Mas...

Sou uma criatura ensimesmada, embora agradável ao convívio. Até os 18 anos, não dava pelas pessoas, me mexia entre elas tão-somente. Mas saí de casa para estudar, e algumas lições se impuseram. A mais forte delas foi que, no mundo, não poderia mais me dar o luxo de não ter convívio social como fazia até então. Algum trânsito seria necessário. E aí deparei-me com uma categoria muito estranha de seres: os vampiros. São seres que se aproximam, ou de que nos aproximamos afetivamente, aproximação em que de repente se insinua a estratégia, como uma arapuca que estava ali o tempo todo e o suposto afeto não deixava ver: dão uma espécie de lambidinha no ego do outro, reconhecendo-lhe os méritos, mas... Mas, inverto eu, o mas aí não é acidental. Todo mundo que passou pela gramática sabe que o que vem depois do mas é o que conta. Mas, ora bolas, digo eu, se a criatura tem reparos sérios à minha pessoa, o que está a fazer ao meu lado? Como veio parar junto a mim? Interessada, naturalmente, no que precede o mas, mas querendo ajeitar o que vem junto, depois, como se paradoxos fossem admissíveis somente no mundo da literatura. Aí eu mesma dou uma mãozinha para a criatura: providencio o afastamento, imediato. Sou hábil nisso. Os primeiros foram mais difíceis, estava aprendendo a técnica, que consiste numa só: não olhar para trás. É desastre certo. A última situação foi um apuro de técnica, meu, claro. Sonhei que a criatura tentava se reaproximar, mas o que tinha a me oferecer era pobre, pouco, traduzido na imagem de roupa de dormir desbotada, comprada em alguma loja barata. Em dois tempos eu etiquetei o sonho: casamento frustrado. E vampiros estão aí, aos montes: querem sua inteligência, sua sagacidade, seu humor, sua alegria, sua saúde, sua independência (pois que lhes falta, muitas vezes). São, como se diz na esteira de Nietzsche, envenenadores da vida, produtores da má-consciência. Eles desejam, justamente por serem pessoas adoecidas,  mutilar o que o outro tem de melhor, talvez para que fiquemos aparentemente parecidos a eles e, como uma aura de empréstimo, alguma coisa nossa migre em sua direção. Não é fácil reconhecer um vampiro, mas eu não hesito na hora de me livrar. 

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