Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 23 de outubro de 2011

se eu seria personagem (título de um conto de Guimarães Rosa)

Eu sinto este espaço, a escrita, quando me apanho a considerá-lo, como uma espécie de personagem. A pessoa que está escrevendo aqui apresenta pontos de intercessão comigo, mas é um eu diferente de tudo que já conheci em mim. Esse distanciamento foi efeito de tempo e da própria escrita, de vivenciá-la de uma forma nova. Há um texto de Luiz Costa Lima, “Persona e sujeito ficcional”, em que ele afirma o caráter por assim dizer personificado de qualquer indivíduo da espécie humana:

“Mas o que é ser uma pessoa? Como toda pergunta trivial ao ser levada a sério, esta é uma pergunta incômoda. Se queremos desbanalizá-la, não resta outro meio senão enfrentá-la. Recorde-se, de início, a singularidade da sociedade humana, entre as outras sociedades animais. Ao nascer, o animal está biologicamente preparado para a vida em espécie. O homem, ao contrário, como já se escreveu, biologicamente é um imaturo; necessita por isso compensar sua deficiência com armas de que não veio geneticamente provido. Costuma-se pensar nessa superação pela capacidade humana de se investir de ferramentas de que não estivera revestido; de por elas prolongar o alcance de seus braços e o limite de seus sentidos. É necessário entretanto não esquecer que tal ultrapasse tem uma contrapartida psíquica: ao mesmo tempo que o homem tem de se instrumentalizar para fora, precisa criar, dentro de si, uma carapaça simbólica; constituir sobre o indivíduo que é, biologicamente, a persona, a partir da qual estabelecerá as relações sociais. A persona não nasce do útero senão que da sociedade. Ao tornar-me persona, assumo a máscara que me protegerá de minha fragilidade biológica. Se nossa imaturidade biológica não nos entrega prontos para a vida em espécie, então a convivência social será direta e imediatamente marcada pela constituição variável da persona. Sem esta, aquela se torna impensável. Não custa entender-se que a persona só se concretiza e atua pela assunção de papéis. É pelos papéis que a persona se socializa e se vê a si mesma e aos outros como dotados de certo perfil; com direito pois a um tratamento diferenciado. (...) O importante a considerar é que a armadura da persona é sempre uma plástica argila, passível de desenhos até mesmo contraditórios. Manter-se sempre igual a si mesmo equivaleria a destruir a própria armadura. (...) Exercer um papel não é necessariamente uma forma de desonestidade. O elogio da autenticidade na verdade apenas confessa que continuamos guiados pela antiga dicotomia entre aparência e essência. Segundo ela, o desempenho de papéis seria uma forma de nos comprometermos com o teatro do mundo, em que aceitaríamos ser atores. Em troca, para as almas honestas sempre haveria a chance de desprenderem-se de suas máscaras e entrarem em contato com a essência individual. Mas que essência tem o homem se não se faz homem senão pelo que não é naturalmente, i.e., pela posse da linguagem? Ora, fazer-nos homens pela linguagem significa fazer-se pelo outro, pela imagem que em nós se deposita a partir de sua palavra. É a palavra do outro (...) que modela nossa persona, a ‘fera’ que nos inventamos.”

Mesmo que o pressuposto de que parte o autor seja problemático, e que não se admita como válida a descontinuidade entre o psíquico e o biológico, não deixa de ser curioso pensar que por estranhos intercâmbios entre os mecanismos físicos e psíquicos desenvolva-se no homem uma constituição íntima que ele supõe autêntica, natural, espontânea, quando na verdade foi um processo à revelia de suas vontades ou escolhas: ou seja, estas, a vontade e as escolhas, atribuídas a alguma porção autônoma de nós mesmos, já estavam inscritas no processo curiosíssimo, de difícil acesso, do estabelecimento, como uma segunda pele, da persona. Acreditamos na ilha da autenticidade (ou na autenticidade da ilha), mas essa crença mesma já faz parte da persona. Um trecho de Guimarães Rosa paradigmático: “Note-se e medite-se. Para mim mesmo, sou anônimo; o mais fundo de meus pensamentos não entende minhas palavras: só sabemos de nós mesmos com muita confusão.” 

COSTA LIMA, Luiz. Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991, p.42-47.

ROSA, João Guimarães. Tutaméia. 8. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p.199.

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