Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

anedota doméstica

Sei que de qualquer jeito que eu contar o ocorrido um pouco da graça será perdida. A graça está no modo como certas coisas despretensiosas ganham um sabor (ou saber) novo. O episódio é simples: estando minha sobrinha comigo, levei-a a um shopping perto de casa, a que se vai a pé. No caminho, enquanto explicava-lhe sobre faixa de pedestres e simbologia do sinal vermelho e verde, comentei que a calçada, um tanto sofrível, não estava muito propícia para andar ― um buraco aqui, um cocô de cachorro ali, um fio solto de poste acolá. Ou seja: várias irregularidades das quais uma pessoa adulta se desvia com facilidade, e mesmo podem passar despercebidas, mas que com os passos tateantes e hesitantes de uma criança ganham mais proeminência e visibilidade. Disse-lhe então que a calçada estava cheia de armadilhas. Ela gostou da palavra, reteve-a, mas repetiu-a pronunciando “amardilha”, inclusive quando relatou a aventura para a mãe. Para escapar das amardilhas, optei por voltar de táxi para casa, aventura que minha sobrinha também apreciou. Há muita vida e encanto pela frente, está cedo para ela conhecer, fora do contexto lúdico e linguístico, qualquer coisa parecida com armadilha. E, protegida pelo amor, pode brincar bastante com as palavras, projetando, sem saber, a palavra amar na palavra armadilha. 

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