Ainda quando morava em BH, num domingo à tarde modorrento, ao gastar o tempo em busca de qualquer coisa que prestasse na televisão, deparei-me, num canal pago, com um programa assaz interessante. Um assuntado em arte, um crítico, creio, escolhia uma pessoa leiga para analisar uma obra qualquer, de sua preferência. A pessoa escolhida foi um funcionário da Pinacoteca do estado de São Paulo, daqueles que moram longe e acabam usufruindo arte por dever do ofício. Achei a proposta interessante, o crítico buscava exatamente isso, a apreciação da obra por um olhar desarmado. Como a Pinacoteca tem um link para visita virtual, e como eu me lembrava do primeiro nome do artista, não foi muito difícil localizar o quadro que o funcionário escolheu. Segue:
Antonio Parreiras, Paisagem (Ventania), 1888
(fonte: aqui)
(Pinacoteca: http://www.pinacoteca.org.br/?pagid=acervo)
O interessante é como o funcionário tirava leite de pedra ao analisar o quadro, de um artista tipicamente acadêmico. Mas é justamente esse olhar desarmado que pode surpreender. Aqui tento reproduzir, conforme recordo, a fala dele, entremeada já à minha leitura. Há um vento forte, sugerindo tempestade, que sopra contra as árvores, situadas num terreno em declive (ou aclive), onde há um caminho meio pedregoso, esburacado, com rachaduras. Bem abaixo, no canto inferior esquerdo da tela, e no limite inferior desse caminho, há uma mulher, uma personagem feminina, que aparentemente se esconde, se protege dessa tempestade, a posição é toda de quem está com medo: sentada no chão, corpo dobrado contra si mesma, de costas para a tempestade, rosto encoberto pelas mãos, ou seja, toda ela é proteção, e talvez algo mais, haja vista que as mãos escondendo o rosto podem estar encobrindo, metonimicamente, outras coisas, da mesma forma que o corpo que se dobra sobre si próprio. A mulher encontra-se no limite inferior do quadro, na parte mais pedegrosa, rachada, danificada do terreno, e a direção da tempestade que sopra nas árvores aponta para onde ela se encontra. Aí a surpresa: se se reparar bem, a tempestade não ocupa toda a tela. Bem no meio da tela, no horizonte, há uma espécie de ar limpo, calmo, sem vento, e o caminho, embaixo tão resvaloso, mais acima parece que vai ganhando um contorno mais suave. Então, a sacada do funcionário é que a personagem está oposta, na tela, ao ponto onde a tempestade acalma, seus sentidos não logram alcançá-lo, e portanto o movimento dela é de proteção (sem contar que há o aclive). Ela não vê o ponto onde a tempestade cessa. Quer dizer, há um "sentimento de solidão e de angústia", conforme li num blog que explora essa imagem. Mas há um ponto em que tudo serena, e que a personagem não vê. Uma leitura despretensiosa, mas que apontava para uma circularidade na tela: o movimento da tempestade joga o espectador na direção da figura que ocupa o primeiro plano, que está no ponto inferior de um caminho ascendente, que leva de novo para a direção do vento. Isolado, mais ou menos no centro da tela, compondo seu horizonte, um céu mais calmo, uma paisagem mais amena, como um contraponto ao conjunto. Eu achei deveras pertinente a proposta, investigar o impacto que a obra de arte tem sobre pessoas comuns, aquelas que não são versadas em teorias ou correntes estéticas e artísticas. Sair do campo da crítica para perceber as sensações despertadas pela obra.
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