Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 31 de agosto de 2010

Luiz Ruffato

51. Política



não posso declinar o nome dele, entende?, ele é muito conhecido, vira e mexe tem retrato dele no jornal, a cara dele aparece na televisão, ele é do interior, montado no dinheiro, parece que tem negócio com café, ele manda eu pegar o carro na quinta-feira, o carro dele, o Pajero, não o oficial, da Assembléia, e eu vou numa casa da Moema, o endereço eu não dou, pode causar problema, mas é uma casa muito decente, não tem nem nome na fachada, quem passa por lá, do lado de fora, nem desconfia, aí eu ponho três mulheres pra dentro, das melhores, só universitária, eu sei porque eu é que pago, passo antes no banco, boto dinheiro vivo no bolso, o velho não é bobo, está com quase setenta, mas otário não é, uma vez levei até uma que era capa da revista Sexy, não sei se você conhece, o deputado olhou  e falou, essa menina freqüenta lá, vê se traz ela, eu levei, puta-que-pariu!, precisava ver que mulherão!, eu carrego elas prum hotel ali na Alameda Santos, o nome não digo, pode dar problema, o deputado é conhecido, deus me livre de rolo!, a corda sempre arrebenta do lado mais fraco e aí quem se fode é o bestão aqui, aí deixo elas no hotel, o gerente já sabe, suíte presidencial, e me mando pra Vila Madalena, tem uma bicha lá que agencia rapazes, sempre gente diferente, aí três caras entram no carro e levo eles pro hotel também, nisso estou ligando do celular pro disque-cocaína, um serviço que tem um motoboy que entrega o troço em mãos e discretamente, mas não é pro deputado não, que ele é contra as drogas, é mais caro, mas ele fala que dinheiro não é problema, e nessa altura já providenciei também o uísque dele, só coisa fina, escocês, porque o deputado fica puto com esse negócio de Jack Daniels, diz ele que isso é coisa de americano, e ele odeia os americanos, a cocaína é pras meninas e pros caras, mas o deputado não obriga ninguém não, cheira quem quer, o uísque eu compro de um chegado meu, que traz do Paraguai, sai bem mais em conta, só coisa de primeira, dezoito anos, rótulo azul, cheguei a arrumar maconha pra uma menina uma vez, no carro ela me pediu, falou que não cheirava nem gostava de beber, que preferia fumar maconha antes, pra dar coragem, porque não apreciava aqueles programas, fazia por necessidade, pra pagar a faculdade, bom, todas elas falam isso, quer dizer, todas não, tem algumas que gostam de sacanagem, eu conheci umas que é só olhar pra cara delas que a gente já percebe que o negócio delas é putaria, bom, aí eu deixo todo mundo lá na suíte presidencial, bem à vontade, verifico os cinzeiros, o deputado detesta cigarro, mas a maioria do povo hoje fuma, ele tolera, vejo se os copos estão limpos, as tolhas, o deputado não confia em ninguém, só em mim, aí ele chega, senta pelado numa poltrona, o copo de uísque na mão, aí eu saio, tranco a porta, e fico no hall do hotel conversando com o barman, que é meu amigo, e ele sempre especula que merda é aquela lá em cima e eu sempre digo que não sei e nem quero saber, porque não tenho nada com isso e a gente fica então conversando sobre política, que é um assunto que eu gosto e ele também.



RUFFATO, Luiz. eles eram muitos cavalos. São Paulo: Boitempo Editorial, 2001, p. 107-109.

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