Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 4 de setembro de 2010

Antonio Candido: Dialética da malandragem

Segue um trecho do conhecido ensaio de Antonio Candido, “Dialética da malandragem”, em que o autor dá formulação teórica, a partir da análise do romance Memórias de um sargento de milícias, ao modo seu tanto peculiar de organização da sociedade brasileira ― o trânsito entre a ordem e a desordem (embora Antonio Candido não explicite em absoluto onde vai buscar essas categorias). Esse trânsito, na análise que Sérgio Buarque de Holanda fez em Raízes do Brasil da constituição de um possível etos da sociedade brasileira, receberia o nome de cordialidade, com consequências de amplo alcance: a confusão entre o público e o privado; o avanço da esfera da família sobre o domínio público; o predomínio do elemento emocional (ou afetivo) sobre o racional nas relações públicas, profissionais; o paternalismo; a confusão entre afetividade e polidez etc. Certamente Antonio Candido não foi indiferente ao homem cordial quando deu formulação teórica ao que chamou de dialética da malandragem:

"Um dos maiores esforços das sociedades, através da sua organização e das ideologias que a justificam, é estabelecer a existência objetiva e o valor real de pares antitéticos, entre os quais é preciso escolher, e que significam lícito ou ilícito, verdadeiro ou falso, moral ou imoral, justo ou injusto, esquerda ou direita política e assim por diante. Quanto mais rígida a sociedade, mais definido cada termo e mais apertada a opção. Por isso mesmo desenvolvem-se paralelamente as acomodações de tipo casuístico, que fazem da hipocrisia um pilar da civilização. [...] Na formação histórica dos Estados Unidos houve desde cedo uma presença constritora da lei, religiosa e civil, que plasmou os grupos e os indivíduos, delimitando os comportamentos graças à força punitiva do castigo exterior e do sentimento interior de pecado. Daí uma sociedade moral, que encontra no romance expressões como A letra escarlate, de Nathanael Hawthorne, e dá lugar a dramas como o das feiticeiras de Salem. Esse endurecimento do grupo e do indivíduo confere a ambos grande força de identidade e resistência; mas desumaniza as relações com os outros, sobretudo os indivíduos de outros grupos, que não pertencem à mesma lei e, portanto, podem ser manipulados ao bel-prazer. A alienação torna-se ao mesmo tempo marca de reprovação e castigo do réprobo; o duro modelo bíblico do povo eleito, justificando a sua brutalidade com os não-eleitos, os outros, reaparece nessas comunidades de leitores quotidianos da Bíblia. Ordem e liberdade ― isto é, policiamentos internos e externos, direito de arbítrio e de ação violenta sobre o estranho ―, são formulações desse estado de coisas. No Brasil, nunca os grupos ou os indivíduos encontraram efetivamente tais formas; nunca tiveram a obsessão da ordem senão como princípio abstrato, nem da liberdade senão como capricho. As formas espontâneas da sociabilidade atuaram com maior desafogo e por isso abrandaram os choques entre a norma e a conduta, tornando menos dramáticos os conflitos de consciência. As duas situações diversas se ligam ao mecanismo das respectivas sociedades: uma que, sob alegação de enganadora fraternidade, visava a criar e manter um grupo idealmente monorracial e monorreligioso; outra que incorpora de fato o pluralismo racial e depois religioso à sua natureza mais íntima, a despeito de certas ficções ideológicas postularem inicialmente o contrário. Não querendo constituir um grupo homogêneo e, em consequência, não precisando defendê-lo asperamente, a sociedade brasileira se abriu com maior larguesa à penetraçao dos grupos dominados ou estranhos. E ganhou em flexibilidade o que perdeu em inteireza e coerência." 

CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. In: ___. O discurso e a cidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Duas Cidades; São Paulo: Ouro sobre Azul, 2004, p. 40-43.

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