Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 4 de setembro de 2010

Fernando Pessoa

Liberdade

Ai que prazer 
Não cumprir um dever, 
Ter um livro para ler 
E não o fazer! 
Ler é maçada. 
Estudar é nada. 
O sol doira 
Sem literatura.
 
O rio corre, bem ou mal, 
Sem edição original. 
E a brisa, essa, 
De tão naturalmente matinal, 
Como tem tempo não tem pressa... 

Livros são papéis pintados com tinta. 
Estudar é uma coisa em que está indistinta 
A distinção entre nada e coisa nenhuma. 

Quanto é melhor, quando há bruma, 
Esperar por D.Sebastião,
Quer venha ou não! 

Grande é a poesia, a bondade e as danças... 
Mas o melhor do mundo são as crianças, 
Flores, música, o luar, e o sol, que peca 
Só quando, em vez de criar, seca. 

O mais do que isto 
É Jesus Cristo, 
Que não sabia nada de finanças 
Nem consta que tivesse biblioteca... 

PESSOA, Fernando. Quando fui outro. (Org. Luiz Ruffato). Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 96-97.

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