Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


segunda-feira, 30 de agosto de 2010

texto de Paulo Leminski acerca da adaptação de "Grande sertão: veredas" para a TV


A pois. E não foi, num vupt-vapt, que as altas histórias gerais da jagunçagem deram de ostentar suas prosápias e bizarrias no tal horário nobre da caixinha de surpresa, pro bem e pro mal, Rede Globo chamada?
Compadre mano velho, mire e veja as voltas que o mundo dá. Quem havera de dizer que toda essa aprazível gente cidadã ia botar gosto em saber das fabulanças daqueles tempos, quando o desmando e a contra-lei atropelavam os descampados do Urucuia, lá praquelas bandas brabas, onde tanto boi berra?
Só dizendo mesmo, a bem dizer, como proclamava meu compadre de Andrade, Oswald, dito e falado, lauto fazendeiro de S. Paulo: a massa ainda vai comer do biscoito fino que eu fabrico. A graça que ia nisso! Tinha muita graça meu compadre de Andrade. Mas o senhor, que é homem instruído, não faça pouco nem ponha reparo nas facécias do compadre Oswald. Era homem sabido de esperto, e quando parecia que estava mais se rindo, mais se estava falando sério. Tudo questão de tino, coisa que é que nem coragem, que tem, como tem gente que não vai ter nunca.
De modos que esse brazilzão todo, rol de gente de nunca acabar, está ficando sabendo, devagarinho, das andanças do jagunço Riobaldo Tatarana, ao lado de seu querido Reinaldo, vale dizer Diadorim. Só que tem um desconforme. A gente não sabia, de princípio, que Reinaldo era mulher, que nem a gente já fica sabendo nas televisivas fabulanças. E se bem me alembro, a memória tem dessas coisas, Reinaldo não era tão bonito como essa beleza de dona Bruna, Lombardi chamada, italiana tirana de tanta boniteza. Semelhava assim, no pisco do olho, uns jeitos de garoto nos seus quinze, dezessete anos, emborasmente mais judiado, que a jagunça vida nasceu pra dar formosura pra ninguém.
Nem ninguém jagunceia por picardia, jagunceia por precisão.
Tarcísio Meira? Meira, dos Meiras dos Buritis-Altos? Ah, não. A pois. Veja você, que é gente de prol e de escol, mire e veja. Não assemelha o Hermógenes. Não, Deus esteja. T’arrenego, e esconjuro! O cão com o cão, e a faca na mão! Aquilo não era criatura de Deus, quem viu, viu sabendo, e bem sabido. Era feio como a necessidade, ninguém nunca deitou os olhões num indivíduo mais puxado a sapo, que até cascavel, para quem gosta, até tem lá suas graças e desenhadas cores.
É, despotismo de calamidades! Teve o fim que mereceu, que o diabo escolhe quem quer, Deus só escolhe os seus.
Do Diabo? Diaa? Diadorim? Do diabo, não se fala. Que diabo hoje não faz favor na gente cidadã. Que diabo, que nada! o coisa-ruim, o que-nem-se-diga, o diantre, o dívida-externa, o Aids, o inflação, o Dielfim-Netto! Acreditar não digo que a gente acreditava. Difícil era achar quem duvidasse, o senhor releve a sutileza, que é cortesia de jagunço velho, mor de não estragar a pontaria.
Pontaria, pontaria mesmo, quem teve nem nunca deixou de ter, foi Riobaldo Tatarana Guimarães Rosa, esse o nome cabal e completo, homem de muitas letras, nenhum igual ninguém nunca nem viu. A pois, mano velho. Tino e siso era ali, jagunço de caudaloso cabedal, tiro certeiro no olho da onça jaguarete, pau e pau, pum e pum.
Quem dissera? Nem quem diria! Aquela parolagem toda, jaguncismo de lei, no tal nobre horário da Rede Globo chamada... Custoso é o mundo de entender, custosa a fala de Riobaldo Tatarana Guimarães Rosa. Aquilo é falar de cristão, cruz-credo, me persigno!? Nem nenhuma lei de sã gramática aquele jagunço reverenciava, e era tudo um redemunho de sustos, que gente como nós é minuciosa nas artes do sem-sobreaviso. Surpresa só. Vá que a gente cidadã nos seus nobres horários vá saber o que a gente só dizia no oco do toco, o senhor que é de lá me diga... e a caixa de surpresa, televisão chamada, não tem validade de força pra suflagrar no durante e no seguinte, os cafundós de filosofismo que Tatarana Guimarães Rosa enredava naqueles cipós lá dele... que esse Tatarana fosse o Homero desses brasis todos, Homero, o senhor sabe, o Adão dos cantadores...
Divago. Mas não disperso. Esse rural acabou. A pois. Mas que foi muita coragem desse tal sio Avancino, Avancini, o senhor me corrija e reja, de ponhar em vídeo e áudio tanto caudal primitivo, que isso foi, foi macheza, ninguém duvida, quem havera de? Eh, mão de obra!
Efetuar proezas é da vida, e o que for do homem, o bicho não come. Contar é que impecilha, a lembrança não pousa nunca no mesmo lugar, e o dito nunca fica como foi, nem o escrito, que só vem muito depois.
Consoantemente meu compadre falecido Tatarana, na glória esteja! Costumo e tenho bom uso de dizer, que com ele aprendi, “viver é muito perigoso”.
Vê lá se televisionar não hevera de ser!

Folha de S. Paulo, Ilustrada, 1º sem. 1996.

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