Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Raimundo Carvalho

Procissão dos homens

Nossa Senhora da Penha,
sou um homem casado,
pai de três filhos,
todos bem criados.
O mais velho é juiz,
o do meio, delegado.
O caçula é o padre
que nos perdoa
o crime organizado.

Nossa Senhora da Penha,
que tortura eu sofria
vendo meus filhos crescerem
em porte, beleza e graça;
a casa cheia de amigos
bebendo de nossa taça!

Mas um dia, uma onda
altíssima, implacável,
levou meu filho mais velho.
O do meio foi queima de arquivo,
o padre foi visto boiando
de bruços num manguezal.

Nossa Senhora da Penha,
Nossa Senhora da Terceira Ponte,
Nossa Senhora da Terceira Margem,
minha aposentadoria não dá pra nada.

Nossa Senhora da Penha,
meus filhos estão sorrindo,
braços abertos para mim,
lá embaixo.

In: Instantâneo: poesia e prosa: fermento literário. Vitória: Secretaria de Estado da Cultura do Espírito Santo, 2005, p.220. [Trata-se de uma coletânea de autores capixabas]

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