Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 19 de outubro de 2010

ironia romântica: o absoluto possível

“A concepção fichteana do sujeito como dobra que se desdobra em eu-sujeito e eu-objeto ou espectador e ator do mesmo drama gnosiológico perpassa a revolução fundamental a que Friedrich Schlegel submete o conceito de ironia. Schlegel se credencia como principal teórico da ironia romântica, sobretudo porque a define como princípio de construção da poesia moderna em verso ou em prosa. A ironia que se caracteriza como romântica, no sentido do romantismo de Jena, postula o primado teórico da contradição e da inconclusividade do discurso genuinamente poético.” [MELO e SOUZA, Ronaldes de. Fichte e as questões da arte: a filosofia de Fichte e a poesia moderna. In: CASTRO, Manuel Antônio de (Org.). A arte em questão: questões da arte. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p.129.]

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“Schlegel avança um passo. Concorda com Fichte quando este afirma que a realização plena do ideal da liberdade humana não é possível. Mas, acrescenta ele, não é possível para a filosofia. E o que a filosofia não pode, visto que ela é abstrata, torna-se exequível para a arte. Se a filosofia não consegue concretizar o ideal da liberdade humana, a arte pode ao menos indicar um caminho que leve a tal concretização. De onde vem esse poder da arte? Na criação artística, o homem serve-se do sensível para dominá-lo e, através desse domínio, o Não-eu, o mundo sensível, como que se espiritualiza, se idealiza. Através da idealização que é a obra de arte, estabelece-se a unidade entre o real e o ideal. Assim, a unidade presente de modo abstrato na teoria de Fichte torna-se concreta na estética de Schlegel. Na arte, o homem aceita o mundo sensível, mas transfigurado por um sentido que lhe foi emprestado pelo espírito.” [BORNHEIM, Gerd. Filosofia do romantismo. In: GUINSBURG, Jacó (Org.). O romantismo. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002, p.93.]

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As questões que a poesia moderna coloca são antes formais, mais do que temáticas. Na poesia romântica, a morte não é apenas um tema, mas um princípio de composição, figurando como uma perspectiva do absoluto possível. A expressão é utilizada por Jaime Ginzburg em sua discussão sobre as estreitas relações entre ironia e melancolia na filosofia e na estética do Romantismo. Na revisão que faz do tema, o autor assinala que no Romantismo o Absoluto é deslocado da exterioridade do homem para a sua própria consciência, quando então seriam vivenciados dois movimentos: o contato com o Absoluto, vivido como entusiasmo, e a queda na imanência, vivida como ironia. A ironia romântica consistiria exatamente na consciência dessa precariedade: “O percurso irônico é ambivalente por incluir um lado de transcendência e um de inocuidade. A interpenetração entre o divino e o terreno se dá como impasse, sem uma síntese que restitua à relação entre o sujeito e o objeto o sentido que a queda suprimiu.” Essa consciência levaria à negatividade, pela possibilidade de perda de sentido do mundo: “se, por um lado, o eu é o fundamento na relação sujeito-objeto, e qualquer objeto tem seu valor atribuído pelo sujeito, por outro, o fato de o eu ser o princípio de tudo acaba por destituir os objetos de um valor a eles inerente, esvaziando o interesse do eu pela realidade.” Assim, no Romantismo, a morte é vivida como uma possibilidade de aniquilamento do eu, que finalmente poderia se encontrar com o absoluto. 


GINZBURG, Jaime. Olhos turvos, mente errante: elementos melancólicos em Lira dos vinte anos, de Álvares de Azevedo. 1997. 321f. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1997, p.80.

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