Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


segunda-feira, 6 de junho de 2011

o jogo da amarelinha: um trecho primoroso

Contudo, por trás de toda e qualquer ação, havia sempre um protesto, pois todo fazer significava sair de para chegar a, ou mover algo para que ficasse aqui e não ali, ou entrar numa determinada casa em vez de entrar ou não entrar na casa ao lado, o que significava que em qualquer ato havia sempre a confissão de uma falha, de algo ainda não feito e que era possível fazer, o protesto tácito diante da contínua evidência da falha, da mesmice, da imbecilidade do presente. Acreditar que a ação podia culminar ou que a soma das ações pode realmente equivaler a uma vida digna desse nome era uma ilusão de moralista. Era melhor renunciar, pois a renúncia à ação era o próprio protesto e não a sua máscara. Oliveira acendeu outro cigarro e esse mínimo gesto o obrigou a sorrir ironicamente e a zombar de si mesmo no próprio ato. As análises superficiais, quase sempre viciadas pela distração e pelas armadilhas filológicas, pouco o preocupavam. A única coisa certa era o peso na boca do estômago, a suspeita de que algo não ia bem. Não se tratava sequer de um problema, mas sim de ter-se negado sempre, desde cedo, às mentiras coletivas ou à solidão rancorosa daqueles que começam a estudar os isótopos radioativos ou a presidência de Bartolomeu Miltre. Se escolhera algo desde jovem, esse algo fora não se defender por meio da rápida e ansiosa acumulação de ‘cultura’, truque muito característico da classe média argentina para tirar o corpo da realidade nacional e de qualquer outra para julgar-se a salvo do vazio que a rodeava. Talvez, graças a essa espécie de fuga sistemática, como a definia seu camarada Traveler, Horacio Oliveira conseguisse evitar o ingresso nessa ordem farisaica (em que militavam muitos amigos seus, em geral de boa-fé, já que a coisa era possível, havendo mesmo exemplos), a qual acabava sempre por evitar o fundo dos problemas mediante uma especialização de qualquer ordem, cujo exercício conferia ironicamente os mais altos títulos de argentinidade.  Além do mais, Oliveira considerava muito fútil e fácil misturar problemas históricos, como ser argentino ou esquimó, com problemas como o da ação ou o da renúncia. Já vivera o suficiente para suspeitar daquilo que, embora esteja debaixo do nariz de todos, poucas vezes se percebe: o peso do sujeito na noção do objeto. A Maga era das poucas pessoas que jamais esqueciam que o rosto de um sujeito qualquer influía sempre na ideia que esse sujeito pudesse ter do comunismo ou da civilização creto-micênica e que a forma de suas mãos estava presente naquilo que o dono pudesse sentir diante de um Ghirlandaio ou de um Dostoievski. Era por isso que Oliveira tendia a reconhecer que seu grupo sanguíneo, o fato de ter passado a infância rodeado de tios majestosos, alguns amores contrariados na adolescência e uma facilidade para a astenia poderiam ser fatores de primeira ordem na sua cosmovisão. Era classe-média, era portenho, era colégio-nacional, e essas coisas não têm cura. O mal estava em que, à força de recear a excessiva localização dos pontos de vista, Oliveira acabara por pesar e até aceitar demasiadamente o sim e o não de tudo, por olhar, do ângulo do fiel, os pratos da balança. Em Paris, tudo era Buenos Aires e vice-versa; no mais profundo amor, ele sofria e aceitava a perda e o esquecimento. Essa atitude era perniciosamente cômoda e até fácil, pouco faltando para se tornar um reflexo e uma técnica: a terrível lucidez do paralítico, a cegueira do atleta perfeitamente estúpido. Começa-se a caminhar pela vida com o passo pachorrento do filósofo e do clochard, reduzindo cada vez mais os gestos vitais ao mero instinto de conservação, ao exercício de uma consciência mais atenta a não se deixar enganar do que a apreender a verdade: quietismo laico, apatia moderada, desatenção atenta. O importante, para Oliveira, era assistir sem desânimo ao espetáculo dessa divisão Tupac-Amarú, não incorrer no pobre egocentrismo (criolicentrismo, suburcentrismo, cultucentrismo, folclocentrismo) que, cotidianamente, era proclamado em volta dele, sob todas as formas possíveis. Aos dez anos, numa tarde de tios e pontificantes homilias histórico-políticas, à sombra de trepadeiras, manifestara timidamente a sua primeira reação contra o tão hispano-ítalo-argentino ¡Se lo digo yo!”, acompanhado por um potente soco na mesa, que devia servir como ratificação irada. Glielo dico io! ¡Se lo digo yo, carajo! Que valor ratificador, havia perguntado Oliveira a si mesmo, tinha aquele yo? Que onisciência conjugava aquele yo dos grandes? Aos quinze anos, travara conhecimento com ‘só sei que nada sei’; a cicuta concomitante lhe parecera inevitável: não se desafia quem quer que seja dessa forma, se lo digo yo. Mais tarde, teve o prazer de comprovar como, nas formas superiores de cultura, o peso das autoridades e das influências, a confiança que dão as boas leituras e a inteligência, também produziam seu “se lo digo yo”, requintadamente dissimulado, inclusive para aquele que o proferia; depois, sucediam-se os “siempre he creído”, “si de algo estoy seguro”, “es evidente que”, expressões quase nunca compensadas por uma apreciação desapaixonada do ponto de vista oposto. Era como se a espécie protegesse o indivíduo para não o deixar avançar demais pelo caminho da tolerância, pela dúvida inteligente, pelo vaivém sentimental. Em dado momento, surge sempre o endurecimento, a esclerose, a definição: negro ou branco, radical ou conservador, homossexual ou heterossexual, figurativo ou abstrato, San Lorenzo ou Boca Juniors, carne ou legumes, os negócios ou a poesia. E isso, afinal, estava certo, pois a espécie humana não podia acreditar em tipos como Oliveira; a carta de seu irmão era exatamente a expressão dessa repulsa.

CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Trad. Fernando de Castro Ferro. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, p.27-29.  

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