Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 3 de julho de 2011

Franz Kafka (narrativas do espólio)

O PIÃO
 
Um filósofo costumava circular onde brincavam crianças. E
, se via um menino que tinha um pião, já ficava à espreita. Mal o pião começava a rodar, o filósofo o perseguia com a intenção de agarrá-lo. Não o preocupava que as crianças fizessem o maior barulho e tentassem impedi-lo de entrar na brincadeira; se ele pegava o pião enquanto este ainda girava, ficava feliz, mas só por um instante, depois atirava-o ao chão e ia embora. Na verdade acreditava que o conhecimento de qualquer insignificância, por exemplo, o de um pião que girava, era suficiente ao conhecimento do geral. Por isso não se ocupava dos grandes problemas ― era algo que lhe parecia antieconômico. Se a menor de todas as ninharias fosse realmente conhecida, então tudo estava conhecido; sendo assim só se ocupava do pião rodando. E, sempre que se realizavam preparativos para fazer o pião girar, ele tinha esperança de que agora ia conseguir; e, se o pião girava, a esperança se transformava em certeza enquanto ele corria até perder o fôlego atrás do pião. Mas quando depois retinha na mão o estúpido pedaço de madeira, ele se sentia mal e a gritaria das crianças ― que ele até então não havia escutado e agora de repente penetrava nos seus ouvidos ― afugentava-o dali e ele cambaleava como um pião lançado com um golpe sem jeito da fieira. 

KAFKA, Franz. Narrativas do espólio. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.136-137.

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