Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

e a curva dos lábios manteve a inocência...

Diante de enfrentamentos recentes, desejei com ternura ter de novo a oportunidade da inocência. Mas para isso seria preciso renascer ― ou acreditar em metempsicose. A não ser que fosse possível renascer neste corpo. Por acaso, ouço agora o trecho da fala de José Miguel Wisnik que focaliza a tópica do espelho (ou do narcisismo) em Machado de Assis, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Trata-se do seguinte fragmento de Clarice:

A SURPRESA
Olhar-se ao espelho e dizer-se deslumbrada: Como sou misteriosa. Sou tão delicada e forte. E a curva dos lábios manteve a inocência.
Não há homem ou mulher que por acaso não se tenha olhado ao espelho e se surpreendido consigo próprio. Por uma fração de segundo a gente se vê como um objeto a ser olhado. A isto se chamaria talvez de narcisismo, mas eu chamaria de: alegria de ser. Alegria de encontrar na figurar exterior os ecos da figura interna: ah, então é verdade que eu não me imaginei, eu existo.

Clarice Lispector. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p.23.

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