Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

João Cabral de Melo Neto: o cante a palo seco



“A PALO SECO”
A R. Santos Torroela

1.1.  
Se diz a palo seco
o cante sem guitarra;
o cante sem; o cante;
o cante sem mais nada;

se diz a palo seco
a esse cante despido:
ao cante que se canta
sob o silêncio a pino.

1.2.
O cante a palo seco
é o cante mais só:
é cantar num deserto
devassado de sol;

é o mesmo que cantar
num deserto sem sombra
em que a voz só dispõe
do que ela mesma ponha.

1.3.
O cante a palo seco
é um cante desarmado:
só a lâmina da voz
sem a arma do braço;

que o cante a palo seco
sem tempero ou ajuda
tem de abrir o silêncio
com sua chama nua.

1.4.
O cante a palo seco
não é um cante a esmo:
exige ser cantado
com todo o ser aberto;

é um cante que exige
o ser-se ao meio-dia,
que é quando a sombra foge
e não medra a magia.

2.1.
O silêncio é um metal
de epiderme gelada,
sempre incapaz das ondas
imediatas da água;

a pele do silêncio
pouca coisa arrepia:
o cante a palo seco
de diamante precisa.

2.2.
Ou o silêncio é pesado,
é um líquido denso,
que jamais colabora
nem ajuda com ecos;

mais bem, esmaga o cante
e afoga-o, se indefeso:
a palo seco é um cante
submarino ao silêncio.

2.3.
Ou o silêncio é levíssimo,
é líquido e sutil
que se ecoa nas frestas
que no cante sentiu;

o silêncio paciente
vagaroso se infiltra,
apodrecendo o cante
de dentro, pela espinha.

2.4.
Ou o silêncio é uma tela
que difícil se rasga
e que quando se rasga
não demora rasgada;

quando a voz cessa, a tela
se apressa em se emendar:
tela que fosse de água,
ou como tela de ar.

3.1.
A palo seco é o cante
de todos mais lacônico,
mesmo quando pareça
estirar-se um quilômetro:

enfrentar o silêncio
assim despido e pouco
tem de forçosamente
deixar mais curto o fôlego.

3.2.
A palo seco é o cante
de grito mais extremo:
tem de subir mais alto
que onde sobe o silêncio;

é cantar contra a queda,
é um cante para cima,
em que se há de subir
cortando, e contra a fibra.

3.3.
A palo seco é o cante
de caminhar mais lento:
por ser a contrapelo,
por ser a contravento;

é cante que caminha
com passo paciente:
o vento do silêncio
tem a fibra de dente.

3.4.
A palo seco é o cante
que mostra mais soberba;
e que não se oferece:
que se toma ou se deixa;

cante que não se enfeita,
que tanto se lhe dá;
é cante que não canta,
cante que aí está.

4.1.
A palo seco canta
o pássaro sem bosque,
por exemplo: pousado
sobre um fio de cobre;

a palo seco canta
ainda melhor esse fio
quando sem qualquer pássaro
dá o seu assovio.

4.2.
A palo seco cantam
a bigorna e o martelo,
o ferro sobre a pedra,
o ferro contra o ferro;

a palo seco canta
aquele outro ferreiro:
o pássaro araponga
que inventa o próprio ferro.

4.3.
A palo seco existem
situações e objetos:
Graciliano Ramos,
desenho de arquiteto,

as paredes caiadas,
a elegância dos pregos,
a cidade de Córdoba,
o arame dos insetos.

4.4
Eis uns poucos exemplos
de ser a palo seco,
dos quais se retirar
higiene ou conselho:

não o de aceitar o seco
por resignadamente,
mas de empregar o seco
porque é mais contundente.


MELO NETO, João Cabral. Serial e antes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p.231-235.

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