Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Rainer Maria Rilke: Livro de Horas

Amiúde penso: há de haver arcas de tesouros
onde estas muitas vidas jazem todas
como couraças, como liteiras ou berços
a que jamais subiu um ser autêntico,
e que são como roupas que vazias
não se aguentam em pé e ao caírem dobram-se
junto às grossas paredes de pedra trabalhada...
E quando à noite eu me afasto cada vez mais
de meus jardins, onde eu fico cansado,
eu sei: então todo caminho leva
ao arsenal das coisas não vividas.
Árvore não há lá, ao deixar-se a terra
e, como em volta de um presídio, há um muro
sem janela nenhuma, em sétuplo cercado;
e seus portões, de férreas dobradiças,
armados contra os que ali dentro anseiam,
têm grades feitas por mãos humanas.  


RILKE, Rainer Maria. Livro de horas. Trad. Geir Campos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993, p.109.

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