Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 21 de abril de 2012

sentimento do sagrado

Não há nada mais sagrado que a palavra. No limiar da palavra encontra-se a dúvida, que detém em espera, expectativa e silêncio ― cada palavra uma longa, longuíssima história. No flagrante instantâneo, presente chamado, dessa história, como se tudo tivesse evoluído para que barata pudesse se chamar barata, depara-se com a vulgaridade da coisa objetivada em palavras imediatas. A objetivação da coisa em coisa-palavra, cada coisa com sua palavra-chave, chave que abre a coisa ao domínio, à posse. Mas a coisa esquiva-se, e antes quer dominar quem a nomeia com simplicidade e ao mesmo tempo perfeita convicção de que é senhor do domínio chamado linguagem, e de que uma barata jamais foi outra coisa senão barata. Na verdade domina. Ao homem não basta a linguagem que nomeia as coisas, ele precisa das coisas para afirmar-se. Nunca precisou tanto. Coisas, muitas, caras, sofisticadas, consumidas publicamente, ou pelo menos tendo sua posse e consumo publicados, tornados públicos. Coisas de uso privado e individual, mas ao mesmo tempo pertencendo a uma bolsa de valores em que não faz sentido possuir a coisa se sua posse não puder ser divulgada. Isso determina o seu valor, e o valor de quem a possui. Quando se percebe, a palavra já está a tal ponto subordinada à coisa que a liberdade ― palavra que nomeia algo tão intangível ― torna-se impossível. “Liberdade ― essa palavra,/ que o sonho humano alimenta:/ que não há ninguém que explique,/ e ninguém que não entenda!” ― dizem os belíssimos versos de Cecília Meireles, versos que nos desconcertam ao final de Ilha das Flores, este filme que revira pelo avesso palavras e coisas, na esperança de encontrar o homem.

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