Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


domingo, 10 de outubro de 2010

Sérgio Buarque de Holanda: a crítica como profissão

Praticamente todos os críticos brasileiros atuantes na imprensa nos decênios de 1940 e 1950 serviram-se da teoria, mas ao mesmo tempo não descuravam do papel de mediação que a atividade jornalística exigia. Isso fica muito claro num depoimento que Sérgio Buarque de Holanda faz no prefácio a Tentativas de mitologia (1979), seu segundo livro de crítica (o primeiro é Cobra de vidro), sobre como se deu seu retorno à crítica literária no decênio de 1940 e as incumbências a que isso o obrigou:

“Com igual zelo eu me lançara a outras ciências humanas, e sobretudo à literatura e à filosofia, chegando mesmo a acumular acerca dessas especializações apreciável grau de informação e leitura. Se essa versatilidade de minhas preocupações não justificava por si só o primeiro convite que recebi para professor universitário, o fato é que me encaminhou para a crítica literária em jornais de mais de um Estado, numa época em que a imprensa diária não dispensava os rodapés de crítica. [...] Quando aceitei a incumbência de fazê-los, movido por necessidades mais imperiosas que minha vontade ou vocação, o remédio era fazer o que se podia esperar sobretudo de um crítico literário, por pouco que a palavra ‘literário’ não precisasse ser interpretada numa acepção demasiado estrita. O caso foi que logo cuidei de enfronhar-me em tudo quanto houvesse de mais atual então e de mais fecundo no tocante às técnicas de criação e crítica literária, comprando ou encomendando no estrangeiro publicações especializadas, ou apelando para a boa vontade de amigos melhor informados que eu no assunto, que se prontificaram a emprestar-me livros ou revistas de que ia necessitando. Já tinha em casa bom número de obras, geralmente em francês ou alemão, acumuladas durante anos, que seriam de bom serviço para a atividade a que agora era chamado. De repente, um inesperado convite recebido da Divisão Cultural do State Departament em Washington, D.C., através da embaixada no Rio de Janeiro, para uma visita de três meses aos Estados Unidos, iria permitir-me trazer, de volta ao Brasil, toda uma pequena bibliografia do new criticism anglo-americano, que já ia encontrado, entre nós também, adeptos fervorosos e em geral pouco transigentes. A rapidez e a facilidade relativa com que, de posse de tamanho e tão variado acervo, passei a absorver muitos conhecimentos que haviam escapado até então a minha órbita, confundiram num primeiro momento, até amigos meus dos mais chegados, como Afonso Arinos de Melo Franco ou Otto Maria Carpeaux, e houve quem manifestasse de público sua surpresa diante da massa de informações que passaram de súbito a revelar meus escritos sobre coisas que nunca, antes, eu mostrei conhecer tão intimamente. Manuel Bandeira, ao registrar minha volta à crítica, após uma fase de profundo desinteresse pela poesia e a ficção, e de sedução pelos estudos históricos, comentou: ‘Ninguém diria também que voltasse de ponto em branco, a par de tudo o que se passara no mundo das letras. Tomou pé da noite para o dia’. Referi-me à facilidade ‘relativa’ desse meu aprendizado, porque, apesar da opinião em contrário de amigos, a facilidade foi mais aparente que verdadeira. Só eu sei o que isso me custou de aplicação obstinada, às vezes quase desesperada, de arrebatamentos, vigílias, insônias, leituras ou releituras, paciências, impaciências, horas de transe e desfalecimentos. Para sair-me sofrivelmente da empreitada que aceitara, teria de passar por isso, sem me descuidar de desfazer depois as marcas do meu esforço ainda sensível. Parecia-me indispensável dissipar essas marcas, que eram como andaimes destinados a desaparecer na construção acabada. Com isso, a preocupação de não sobrecarregar meus textos com nomes e citações de autores mal conhecidos da maioria dos leitores, sabendo que eles servem principalmente para impressionar os inseguros e os basbaques, e até com o cuidado de não mostrar tudo o que eu conhecia de tal ou qual matéria em discussão ― mas sem incorrer no risco de passar por mal informado, defeito que seria imperdoável em um crítico, personagem naturalmente presunçoso, pois que se faz passar, no fundo, por onisciente ―, procurava alijar de meus escritos tudo quanto tivesse um ar de coisa postiça, e dar, com isso, ao conjunto, um aspecto de razoável espontaneidade." (HOLANDA, Sérgio Buarque de. Tentativas de mitologia. São Paulo: Perspectiva, 1979, p. 15-16.)

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