Gosto de imaginar que ilhas significam-se ― fazem-se dizer por signos ― mediante barcos que se aventuram nas águas que as separam, mas também as unem: as águas podem ser oceânicas ou simples veredas, salgadas ou doces, profundas, turbulentas e mais difíceis de navegar, ou arroios cristalinos que escorrem transparentes entre pedras e vegetação de grande frescor. Os barcos, as palavras. E tudo o mais que diz respeito à palavra afeto, no sentido de afetar, atravessar. Escrever e ler são pontas de ilhas que se fazem significar ― os trajetos dependem dos barcos, das ilhas, das águas que as separam. Este blog não pretende nada, exceto lançar barcos que eventualmente alcancem outras ilhas. Barquinhos de papel.


sábado, 16 de outubro de 2010

amor, casamento e algumas questões de gênero no ocidente cristão

Na sociedade ocidental, há papeis sociais mais ou menos delimitados para homem e mulher, que preveem, a dada altura da vida, o casamento. No entanto, é interessante observar que esse desenho, ou projeção, de um universo essencialmente heterossexual é apenas uma mistificação para o assentamento social da instituição do casamento, de história recente, aliás. É o que mostra Ronaldo Vainfas no livro Casamento, amor e desejo no ocidente cristão (São Paulo: Ática, 1992): “O modelo matrimonial da igreja triunfou nos séculos XII e XIII. Impôs-se ao clero o celibato, e aos leigos ― nobres ou camponeses  o casamento monogâmico e indissolúvel. No bojo desse processo, a Igreja afirmou-se como o poder supremo do Ocidente. A sacramentalização do casamento foi a base, portanto, do triunfo político da Igreja, e matéria privilegiada da codificação moral da cristandade.” Mais adiante: “Na antiguidade clássica, os filósofos e os poetas imaginaram o amor como ascese, entrega mútua, sentimento entre iguais. Sensível e sexualizado, o amor era um privilégio dos homens e excluía o casamento. Muito mais tarde idênticos valores seriam transferidos para a relação entre o homem e a mulher e, sobretudo, para o casamento. As raízes dessa mudança encontram-se espalhadas no tempo. [...] No entanto, o amor conjugal não se imporia como valor ideal do casamento antes do século XIX, ou talvez, do XX.” Ou seja: conflue no século XIX certo modelo de família assentado na relação sensível e sexualizada entre um homem e uma mulher, pautada pelo amor mútuo. Não é coincidência que esse modelo, que é uma construção histórica, e não uma necessidade natural, tenha surgido exatamente quando o capitalismo se afirma como modo de produção, que tem a burguesia como principal agente desse processo. Também as derivações do movimento romântico jogam um papel importantíssimo nisso. Em princípio contestador da ordem social, o Romantismo vai produzir narrativas que colocam o amor como o sentimento mais importante da vida de um ser humano, seja ele homem ou mulher. Mas é claro que o casamento é um contrato, antes de mais nada. Se o amor fosse esse porto seguro todo que as pessoas apregoam aos quatro ventos não haveria necessidade de ir ao cartório registrá-lo (não cabe aqui entrar no mérito de questões da mais alta relevância, como bens e filhos, não é disso que se trata, mas do fato de uma construção histórica ser tomada como necessária, na falta de termo melhor). A questão é outra: amor e casamento não são a mesma coisa, nunca foram. E as mulheres quase sempre arcam com o ônus desse equívoco, ao aceitarem docilmente, quase buscando-o, o papel a elas reservado pelas narrativas do patriarcado. Então, uma terapêutica para isso talvez seja desconfiar desses modelos prontos, como receitas, que são oferecidos pela sociedade, e principalmente da ilusão heterossexual criada pelo patriarcado. Desconfiar, sempre, e observar, bastante, principalmente as mulheres. Enquanto elas continuarem a fazer o jogo dos homens, vai ficar difícil. Não faltam arquétipos masculinos a enfeitar o jardim de sonhos das mulheres, sonhos que muitas vezes acabam por se converter em pesadelos. O amor é um encontro, não um comércio de afetos. Já faz tempo que os tempos estão mudando, a velha estrada está rapidamente ficando obsoleta, o que foi presente no passado não é o futuro de agora. Mas as pessoas insistem em não enxergar, insistem em querer ser as últimas a apagar a luz, acreditando que ainda há alguma luz a apagar. Há luz a pagar, apenas, e é difícil enxergar na escuridão. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário